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segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Precisamos levar os liberais a sério

Em 2002 John MacArthur pregou uma mensagem na qual disse que o maior problema da Igreja era não saber e não querer distinguir entre um cristão verdadeiro e um falso. Concordo com ele. Todo mundo se considera cristão. Mórmons, Testemunhas de Jeová, espíritas, católico-romanos, liberais, fundamentalistas, ortodoxos e por ai vai. A não ser que sejamos universalistas e reduzamos o Cristianismo à definição de Schleiermacher (“religião é simplesmente a consciência da dependência de Deus”), temos que admitir que nem todos que se dizem cristãos de fato o são.

Uma das obras mais importantes produzidas no calor do debate entre fundamentalistas e liberais no início do séc. XX foi
Cristianismo e Liberalismo de J. Gresham Machen (já publicada em português), provavelmente o mais preparado exegeta da frente conservadora na época. A tese de Machen era que a religião resultante do liberalismo simplesmente não era Cristianismo. Criam noutro Deus, usavam outra Bíblia, seguiam outro Cristo e pregavam outro Evangelho.

Machen estava absolutamente correto, mas não foi ouvido. O “meião” das principais denominações pensava que o liberalismo era apenas mais uma corrente da já fragmentada ala protestante do cristianismo. Pensavam que o confronto entre conservadores e liberais era intramuros, duas legítimas facções cristãs duelando por espaço. Hoje, contudo, fica cada vez mais claro que esse confronto ultrapassa os limites do cristianismo. É um conflito de religiões.

Não me entendam mal. Não estou dizendo que todos os liberais vão para o inferno e nem que todos os conservadores vão para o céu. Estou apenas dizendo que aquilo em que o liberalismo teológico acredita é completamente distinto daquilo que o Cristianismo acredita. Já estou vendo gente levantando a mão e dizendo que os liberais é que se consideram o Cristianismo. Eu respondo que não dá, pois eles ainda não chegaram a um acordo sobre quais estórias e ditos de Jesus nos Evangelhos são verdadeiros ou não e, portanto, não podem dizer se o que crêem é Cristianismo ou não.


Temos que levar os liberais a sério e entender muito bem aquilo em que acreditam. Para eles, a verdade evolui, cresce e muda. E não somente ela, mas nosso entendimento da mesma evolui a ponto de certezas anteriores poderem ser substituídas por novas e contraditórias verdades. Assim, as crenças de ontem não servem para hoje. Liberais realmente acreditam que a fé professada pela Igreja Cristã durante dois mil anos está equivocada e ultrapassada, no todo ou em parte. Acreditam sinceramente que é preciso reinventar a Igreja, refazer a teologia dos pés à cabeça, reformular os antigos credos, criar novas formas litúrgicas e adotar novas posturas em relação à ciência, a cultura e as outras religiões. E desse ponto de vista, os maiores inimigos da verdade são os conservadores, os fechados, obtusos, intransigentes e fundamentalistas que se entrincheiraram nas denominações e seminários e teimam em conservar antigas crenças.

O que o liberalismo propõe não é um remendo do Cristianismo. É uma substituição.

Senão, vejamos. O liberalismo teológico crê que a Trindade e a divindade de Jesus Cristo são frutos da invasão da filosofia grega na teologia cristã nascente, que Deus não se revelou de forma proposicional, que talvez ele seja imanente e não mais transcendente, que a Bíblia é apenas o testemunho escrito (e falível) da fé de Israel e da Igreja primitiva, que Paulo deturpou o cristianismo simples de Jesus e dos Doze apóstolos e inventou a doutrina da justificação pela fé em Cristo. Paulo também inventou que Jesus morreu pelos nossos pecados e ressuscitou fisicamente de entre os mortos. Acreditam que no momento em que a Igreja Cristã começou a elaborar credos e confissões ela se desviou do cristianismo simples do Jesus histórico e nos deu um Cristo da fé, processo que já teria começado com os apóstolos, especialmente Paulo. Acreditam que a Igreja Cristã se perdeu completamente na interpretação da Bíblia através dos séculos e que somente com o advento do Iluminismo, do racionalismo e das filosofias resultantes é que se começou a analisar criticamente a Bíblia e a teologia cristã, expurgando-as dos alegados mitos, fábulas, lendas, acréscimos, como os mitos da criação e do dilúvio, personagens inventados como Adão e Moisés, etc.

Ainda que nem todos os pontos acima sejam professados por todos os liberais, eles expressam razoavelmente o que o liberalismo em geral acredita. E como se pode ver, liberalismo não é Cristianismo, apesar de usar sua forma e linguagem.

Os liberais acreditam que sua missão é permanecer nas igrejas e seminários e lutar por mudanças. Eles têm uma missão, um sonho, um ideal. O messianismo liberal tem como alvo iluminar os ignorantes presos nas trevas da tradição e libertar a Igreja dos obtusos, obscurantistas e inimigos do progresso da verdade. Lutarão até o fim para isso. Não se sentem compelidos a sair de suas denominações. Acham legítimo usar os recursos delas nessa cruzada santa. Até porque, como já disse em outro post, não têm outra forma de suporte ou sustento.
Muitos evangélicos de hoje não conseguem ver a diferença entre liberalismo e Cristianismo. A razão, em parte, é que os liberais continuam a usar as estruturas eclesiásticas tradicionais e o vocabulário cristão tradicional, embora com outro sentido. Outra razão é a falta de convicções doutrinárias do evangelicalismo brasileiro, minada pelo pragmatismo e relativismo de nossa época.

Precisamos levar os liberais a sério. Isso significa reconhecer claramente o grande abismo que separa o que eles crêem do Cristianismo.

12 comentários:

  1. Foi o último post no novo blog do Phillip Johnson que motivou a falar do Machen? O Dan Philips, que participa deste novo Pyromaniacs, acabou de postar algo sobre a influência do Greshan Machen em sua vida.

    No fim do post existem alguns links com mais material sobre ele, inclusive uma palestra do Piper.

    http://teampyro.blogspot.com/2006/02/how-j-gresham-machen-helped-and.html

    abraços!

    P.S.: Estou recomendando este blog para os calouros do seminário. Estes dias, uma aluna chorou (de verdade!) em plena sala de aula, por causa de um prof. que "desmistificava" o AT. Danos do liberalismo até a curto prazo.

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  2. Augustus,

    Toda esta idéia de que o pensamento, a fé, o espírito, etc., evoluem, é uma imagem do velho paganismo e sua 'gnose', seu mysterium tremendum e etc. Referir-se ao Deus da Bíblia, que tem nome e revela o seu nome como 'o sagrado', o 'divino' não passa de uma forma de gnosticismo trasvestida. Talvez seja necessário continuar falando sobre o liberalismo, afinal, ele toma tantas formas, até acadêmicas, e muitos sequer percebem onde estão pisando. Precisamos levar os liberais a sério.

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  3. Josaías,

    Eu vi o post do Phil Johnson, mas somente depois que tinha escrito meu post. Sou fã do Machen há muito tempo. Obrigado pelo link.

    Abraços.

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  4. Anônimo7/2/06 13:16

    Olá Pastor Nicodemus!
    Que bom poder lê-lo! Suas orientações são sempre muito prudentes e elucidativas. Louvo a Deus por sua vida e a dos amados que compartilham este "Blog" com o senhor. Que o nosso Deus continue fazendo-o bênção em nosso meio!
    Sueli

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  5. Anônimo7/2/06 15:14

    Excelente texto! Parabéns!

    Soli Deo Gloria!

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  6. Recentemente adquiri o livro do Greshan Machen, pra poder entender melhor essa questão do liberalismo.
    E, sem dúvida alguma, o liberalismo não é cristianismo nem aqui nem em qualquer outro lugar do planeta.
    O mais engraçado é perceber o quanto as pessoas da igreja desconhecem esse monstro, muitos ainda vem genesis apenas como o mito da criação que tem que ser visto apenas como alegoria. Muitos dúvidam que existiu uma Eva e um Adão.
    É realmente de chorar.
    Deus o abenções Nicodemus, e continue lutando contra essa praga que é o liberalismo.

    Alexsandro

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  7. "O que o liberalismo propõe não é um remendo do Cristianismo. É uma substituição.

    Acredito que essa frase do senhor resume muito bem a questão. É o modo como tento abordar o assunto em qualquer diálogo.

    Josaías, valeu pelo link do Pyromaniacs! E sobre sua amiga, posso me lembrar da minha primeira aula com um professor liberal. Foi triste mesmo. Que Deus guarde a fé desses pessoas que chegam aos seminários pensando em aprender mais de Deus e tomam uma pedrada dessas.

    Abraço, gente.

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  8. Anônimo8/2/06 07:59

    Tive um experiência interessante,na semana passada, quando ministrava um curso de teologia contenporânea na Faculdade de Teologia da Assembléia de Deus (FATAD). foi um curso de verão. Durante uma semana, eu fiz uma panorama da controvérsia entre o liberalismo e o fundamentalismo, culminando na sexta-feira na apresentação de uma série de teologias radicais, como a teologia negra, teologia gay e a teologia feminista.

    Como texto obrigatório, os alunos tiveram que ler o Machen. Foi interessante vê-los descobrir, alguns pela primeira vez, as implicações nefastas do liberalismo na igreja.

    Pastor liberal para a maioria do pessoal da FATAD, que são ligados ao ministério de madureira, era um pastor que usa bermuda e joga futebol! rs rs.

    Bom, tive também um grande susto. Mas, que demonstrou a todos, a mim e a eles, que as influências do lberalismo, como teologia adaptada aos modismos culturais, já está entre nós.

    Na aula de teologia feminista, apresentei as principais linhas de abordagem, desde o rejeicionismo radical, que despreza todo o teísmo cristão como essencialmente machista até a visão reformada conservadora, que defende a difenrença essencial entre homens e mulheres.

    Falei de minha posição de ser contra a ordenação feminina, mas sou membro de uma denominação que ordena mulheres há mais de dez anos. Sofro, mas oro para que Deus ilumine os líderes da minha igreja.

    Bem, o choque maior foi impacto de minha posição. Até então a classe estava morna, aqui e ali surgia um comentário sobre a posição do liberais.

    Mas, quando eu lhes falei do feminismo, os ânimos se exaltaram e pessoas que nunca comentaram nada, raivosamente, se colocaram contra mim.

    Diante de tudo isso, tiro a seguinte lição: A aplicação do liberalismo na igreja é mais pernicioso que as estranhas idéias de desmitologização e cia. Que normalmente são rejeitadas como esquisitice de teólogos estrangeiros. Mas, se isso levar a uma prática, o nosso povo como mais facilidade assimila.

    Desculpe o enorme post, mas se o senhor ler tudo, mesmo sem publicá-lo, já deixa satisfeito

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  9. Isaías,

    Muito interessante a sua experiência. Não somente pelas descobertas quanto ao poder sutil do liberalismo teológico, mas especialmente por mostrar que denominações pentecostais vêm rápidamente se abrindo para a boa academia conservadora e reformada.

    A Assembléia de Deus é uma das instituições que mais compra revistas de escola dominical publicadas pela Casa Editora Presbiteriana. Tenho tido oportunidade de pregar e falar em várias igrejas pentecostais nesses ultimos anos. A CPAD vem publicando cada vez mais obras de autores reformados.

    Meus amigos se chocam quando digo que talvez o futuro da fé reformada no Brasil esteja entre os pentecostais clássicos. Grande parte das denominações históricas no Brasil são pós-reformadas e minadas pelo liberalismo.

    Continue firme.

    Um abraço.

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  10. Anônimo8/2/06 12:35

    Augustus,

    eu concordo com vc quanto ao relacionamento mais estreito entre a fé reformada e o pentecostalismo clássico. Também tenho essa percepção que vc escreveu acima.

    Ano passado, o Pr. Phill Newton, batista reformado americano pregou sobre as doutrinas da graça em uma Assembléia de Deus em Niterói - RJ que havia virado reformada.

    Nesse congresso, ajudei uma banca de livros da Fiel e da PES e vendemos muitos livros do MacArthur, L-Jones e Spurgeon para vários pastores e crentes de denominações. Os pastores reformados foram sabatinados de perguntas. Foi muito legal, esse ano vai ter de novo!

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  11. Anônimo8/3/06 09:23

    Bom dia, querido pastor!
    Pois bem, considerei interessante seu texto, sobretudo o calor das palavras que usa para expor sua fé, pensamento e apologética. Contudo, permita-me fazer algumas pontuações. Primeira, vivemos num mundo global e demasiadamente pulverizado por fenômenos religiosos; e diante de tantas manifestações do sagrado e das reações humanas respondendo diversamente a tais aparições, precisamos aprender a respeitar a individualidade de cada experiência humana com o sagrado. Segunda, com tantas guerras em nome de Deus, e cada guerrilheiro defendendo a "verdade" de seu "deus" fica difícil optarmos pelo "deus" certo, ou, verdadeiro. A questão da verdade sempre foi o tema incompleto da filosofia. O nosso Deus Cristão não deve ser usado como portador de verdade absoluta. Trata-se de verdade absoluta dentro das questões confessionais. E assim, cada qual creia na verdade que lhe agrada e aquece seu coração. Porém, essa verdade é sentimental - talvez como dizia o velho Schleiermacher - e não pode ser objeto de especulação. Precisamos adotar um estilo cristão que - humildemente - conviva com o diferente. Isso não quer dizer que devemos comungar com outras fés, porém, respeita-las. O grande problema das religiões sempre foi o ideal proselitista. Devemos deixar Deus - pois é do Espírito Santo a missão de convencer - realizar a obra de transformação das pessoas. O nosso discurso, por mais verdadeiro que seja, não pode estar a serviço de qualquer proselitismo. Até porquer, as pessoas que nós convencemos a abraçarem a nossa fé, não permanecem nela, mas, aquelas em que Deus convence, essas permanecem. Aliás, é essa a principal doutrina dos presbiterianos, conhecida como predestinação.

    Grande abraço,

    sou o Rev. Adilson,

    mestre em Ciências da Religião,
    pela UMESP

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  12. Prezado Adilson,

    Obrigado por sua visita ao nosso blog e por suas ponderações. Concordo com as seguintes: devemos respeitar as experiências das pessoas diante do mundo plural e global em que vivemos. Também que devemos aprender a conviver com o diferente e que é Deus quem transforma as pessoas.

    Talvez a nossa maior diferença seja quanto à natureza do Cristianismo bíblico e nossa relação com ele. Para mim, o Cristianismo bíblico é a única fé verdadeira. Jesus é o único caminho -- não um caminho melhor. O Deus da Bíblia é exclusivista. Rejeitou as religiões pagãs ao redor de Israel (condenou-as todas), rejeitou a religião dos judeus na época de Jesus (o farisaísmo e o saduceísmo). Paulo e os demais apóstolos consideraram as demais religiões como idolatria, fruto da carne e da arrogância humana (leia Romanos 1). E é por essa razão que o Cristianismo tem que ser proselitista, pois se acredita a única religião verdadeira. É claro que existe verdade em outras religiões (verdades éticas, morais, etc.), mas não verdade salvadora. Deus se revelou salvadoramente somente nas Escrituras.

    E quanto à nossa relação ao Cristianismo bíblico, creio que devemos tomar a Bíblia como única regra de fé e prática e ser cristãos como os apóstolos e os primeiros crentes foram, é claro que dentro de nossa cultura tão diversa.

    Estou lhe escrevendo de Johanesburgo, onde participo da Assembléia Geral da Fraternidade Reformada Mundial. Temos aqui dezenas de países representados. mas, todos unidos pela fé em Jesus Cristo, como único Senhor e Salvador.

    Receba meu abraço amigo.

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