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sábado, abril 08, 2006

Judas Redivivo e Desagravado

Cumprindo o ritual que acontece todos os anos na época da Páscoa, a grande mídia acaba de veicular mais uma matéria bombástica diretamente relacionada com o Cristianismo. Trata-se da tradução de um manuscrito copta do século IV que supostamente conteria uma tradução do evangelho apócrifo grego de Judas, cuja origem é estimada em meados do século II. A restauração e a tradução do manuscrito copta foram anunciadas nessa quinta-feira, 6 de abril, pela National Geographic Society em Washington.

A veiculação pela mídia vai na mesma linha de propaganda e especulações anticristãs voltadas mais diretamente contra a Igreja Católica Romana e que acaba respingando nos protestantes, especialmente nas igrejas históricas. O ano passado foi o Evangelho de Tomé. Uma suposta sepultura de Jesus, uma inscrição antiga contendo o nome de Tiago, irmão de Jesus, e outras “descobertas” arqueológicas, fizeram a festa da mídia em anos mais recentes.

Ninguém deve se assustar pensando que essa atitude é um fenômeno atual. Desde os primórdios do Cristianismo, escritores pagãos como Celso e Amiano Marcelino publicam material atacando as Escrituras e o Cristianismo. A ignorância dos articulistas, o preconceito anticristão, a busca do sensacionalismo, tudo isso contribui para que a publicação do manuscrito copta receba uma atenção muito maior do que a devida.

Não quero ser mal compreendido. Como pesquisador e estudioso do Novo Testamento, estou sempre aberto para descobertas arqueológicas e novas pesquisas que nos tragam subsídios para melhor entender o mundo do Novo Testamento e a sua mensagem. Creio que a publicação do evangelho de Judas contribui para nossa compreensão do Gnosticismo e da seita dos Cainitas, autora do documento.

Contudo, estou acostumado a assistir, anos a fio, a exploração sensacionalista dessas descobertas. Lembro-me bem da descoberta dos Manuscritos do Mar Morto e das polêmicas e questões inclusive legais que envolveram a tradução e a publicação dos primeiros rolos. A imprensa da época especulava que os Manuscritos representariam o fim do Cristianismo, pois traria informações que contradiriam completamente o Evangelho. Os anos se passaram e verificou-se a precipitação da imprensa. Os rolos na verdade tiveram o efeito contrário, confirmando a integridade e autenticidade do texto massorético do Antigo Testamento.

Com o objetivo de esclarecer e trazer alguma sobriedade na avaliação da publicação, faço as seguintes observações sobre a publicação do texto do manuscrito.

1. Não se trata da descoberta do Evangelho de Judas. O mesmo já é um velho conhecido da Igreja cristã. Elaborado em meados do século II, provavelmente na língua grega, era conhecido de Irineu, um dos pais apostólicos. Na sua obra Contra as Heresias, Irineu o menciona explicitamente, como sendo uma obra espúria produzida pelos gnósticos da seita dos Cainitas. No século V o bispo Epifânio critica o Evangelho de Judas por tornar o traidor em um feitor de boas obras.

2. Não se trata também da descoberta de um manuscrito antes desconhecido contendo essa obra. Acredita-se que o único manuscrito conhecido, escrito em copta, foi descoberto em meados da década de 1950 e depois de uma longa peregrinação nas mãos de colecionadores, bibliotecas, comerciantes de antiguidades e peritos, chegou às mãos das autoridades. Sua existência foi anunciada ao mundo em 2004. Trata-se de um códice com 25 páginas de papiro, envoltas em couro, das 62 páginas do códice original. Somente essas 25 páginas foram resgatadas pelos especialistas. A tradução que vem a lume agora é dessas páginas.

3. O que é de fato novo é a tradução do texto desse apócrifo, texto até então desconhecido. Contudo, o ponto central que a mídia tem destacado com sensacionalismo, já era conhecido mediante as citações de Irineu e Epifânio, ou seja, que esse evangelho procura reabilitar Judas da pecha de traidor, transformando-o em vítima e herói. Na década de 80 saiu o romance "Eu, Judas", de Taylor Caldwell, publicado pela Círculo do Livro, onde essa versão revisada de Judas foi difundida.

4. Várias matérias publicadas na mídia dizem que Judas Iscariotes é o autor desse evangelho. Contudo, não existe prova alguma disso. Segundo o relato dos quatro Evangelhos canônicos, Judas suicidou-se após a traição. Como poderia ser o autor dessa obra? Irineu, no século II, atribuía a autoria do evangelho de Judas aos Cainitas, uma seita gnóstica. No códice descoberto e agora publicado, não consta somente o evangelho atribuído a Judas, mas duas obras a mais: a “Carta a Filipe” atribuída ao apóstolo Pedro e “Revelação de Jacó”, relacionado com o patriarca hebreu. A presença do evangelho de Judas em meio a essas duas obras apócrifas é mais uma prova da autoria espúria desse evangelho. Chega a ser irritante o preconceito da mídia, que sempre veicula matérias que negam a autoria tradicional dos Evangelhos canônicos, mas que rapidamente atribui a Judas Iscariotes a autoria desse apócrifo.

5. Evangelhos apócrifos e pseudepígrafos eram comuns nos primeiros séculos da era cristã. O Evangelho de Judas é mais um deles. Outros, mais conhecidos, são o Evangelho aos Hebreus, o Evangelho de Tiago, o Evangelho de Maria Madalena, o Evangelho de Filipe, o Evangelho de Tomé, entre outros. O texto desses apócrifos já é conhecido de longa data. Judas, contudo, somente agora vem à lume.

6. O manuscrito que agora foi traduzido não data do século II, mas do século IV. Especula-se que é uma tradução para o copta de uma obra mais antiga escrita em grego, que por sua vez dataria de meados do século II. Daí a inferir a autoria de Judas Iscariotes, que morreu na primeira parte do século I, vai uma grande distância. A seita dos Cainitas, segundo Irineu em Contra as Heresias, era especialista em reabilitar personagens bíblicas malignas, como Caim, os sodomita e Judas. A produção de um evangelho reabilitando o traidor se encaixa perfeitamente no perfil da seita.

Ao final, pesando todos os fatos e filtrando o sensacionalismo e o preconceito anticristão, a publicação do evangelho de Judas em nada contribuirá para nosso conhecimento do Judas Iscariotes histórico, apenas para nosso maior conhecimento das crenças gnósticas do século II. Não representa qualquer questionamento sério do relato dos Evangelhos canônicos, cuja autoria e autenticidade são muito mais bem atestadas, datam do século I e receberam reconhecimento e aceitação universal pelos cristãos dos primeiros séculos.

O texto do evangelho de Judas se encontra disponível no site da National Geographic Society, no link: http://www9.nationalgeographic.com/lostgospel/_pdf/GospelofJudas.pdf

18 comentários:

  1. Preconceito total. É engraçado que se acontecesse algo semelhante com um outro personagem ou acontecimento histórico, ninguém levaria tão a sério.

    Em um blog (não me lembro qual) o autor escreveu um texto noticiando a verdadeira história de George Washington. Aparentemente, ele era um traidor dos EUA e agente da Grã-Bretanha, não o que pensávamos. Tudo isso graças à descoberta de um manuscrito de 1970, mas escrito originalmente por uma suposta amante de Washington. Claro, era brincadeira, que servia justamente para ilustrar como seria ridículo alguém levar a sério um manuscrito que surge 200 anos depois do presidente americano morrer. Se isso acontecesse de verdade, qualquer jornal noticiaria a farsa.

    Mas como se trata da pessoa de Cristo e das origens do Cristianismo, a história é diferente. Deixam passar esses "pequenos" absurdos, e fazem todo aquele estardalhaço pra vender um pouco mais.

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  2. Anônimo8/4/06 19:17

    Poxa... O lado ruim da história é que o pobre do Judas vai continuar com fama de traidor.

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  3. Anônimo9/4/06 00:30

    Para ofender, caluniar e difamar o evangelho sempre aparecem heróis e desbravadores "revolucionários".

    Sempre vem à tona uma nova verdade de fim de semana que promete varrer o evangelho do mapa. Após os comerciais, é claro.

    Põem em dúvida todos os manuscritos que atestam a veracidade do evangelho, por mais abundantes que sejam, mas facilmente encontram a mais suprema verdade e autoridade em qualquer fragmento de texto que traga sombra de heresia.

    Nem um til passará.

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  4. Anônimo9/4/06 06:17

    Eh interessante como aqui nos EUA noticias como esta transformam-se em grnades discussoes dentro da igreja, como se os pastores tivessem que dar explicacoes ao povo acerca do assunto, para poder continuar a ter aqueles membros ali.
    Eu fico pensando em porque os assuntos verdadeiramente importantes nao causam a mesma "adrenalina" no meio da igreja, tal como, missoes, evangelismo, porque ninguem faz congressos ou foruns ou classes especiais para falar desses assuntos??
    So foi um desabafo!!
    Obrigado Rev. Augustus por sua exposicao do tema. Abraco

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  5. Amigos,

    Obrigado pelos comentários, sobre os quais não há nada a comentar visto que enriquecem e confirmam o post.

    Só menciono a reportagem de ontem na Folha de São Paulo, onde o articulista vai na contramão da grande mídia e põe água na fogueira.

    Um abraço.

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  6. Oi, Augustus!
    Coloquei um link no meu novo post para este, que complementa meu texto.
    Abração pra você!

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  7. Alguém precisava chamar esses jornalistas bobos à responsabilidade. É incrível a sua capacidade de fazer barulho com base na mais absoluta ignorância, especialmente em torno do cristianismo. Será que não seria possível termos algo como um "observatório da imprensa" cristão?

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  8. Rev. Augustus,

    É latente e até mesmo esperado o ataque do mundo à igreja de Cristo, querendo desmerecê-la ou colocar os pilares da nossa fé em "xeque".

    O que me impressionou nesta "descoberta" é que a veracidade das informações não importa quando o assunto é atacar a igreja. Temos exemplo disso em artigos científicos, onde "evidências" são lançadas como verossímeis, mas com uma análise mais profunda e um trabalho mais zeloso da igreja seriam considerados como refugo até no próprio meio de onde vieram.

    Dou o exemplo do Prof. Dr. Adauto Lourenço, que vem batalhando neste meio, onde informações são veiculadas e o Cristianismo é escrachado cruelmente.

    Devemos estar sempre alertas.

    Abraços,

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  9. Este comentário foi removido pelo autor.

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  10. A Globo, no Fantástico, falou em "reescrever a história"!! Nossa...

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  11. É descarada a forma com que a midia tenta, em vão, minar os fundamentos do Cristianismo. Vejam que no mesmo programa é veiculada uma matéria que primeiro, tenta desacreditar o evangelho como o conhecemos e depois alimenta uma teoria cientifica que anda capengando, ou seja, a evolução.

    O Dr. Adauto têm feito um excelente trabalho nesse sentido, mostrando como as evidencias podem ser, de uma certa forma, maqueadas e assim atenderem as "crenças" daqueles que as divulgam como verdades irrefutáveis.

    Muito obrigado por mais um excelente post.

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  12. Augustus,

    É bom que se entenda que para um livro ser reconhecido pela Igreja existe a necessidade de alguns critérios. Quais são esses critérios? Citarei apenas dois:

    1º Ser escrito por um apóstolo. O apóstolo é aquele indivíduo que viveu com Cristo, sendo seu discípulo; e foi testemunha da sua ressurreição. Judas Iscariotes não se enquadra nesse critério. Judas não era um apóstolo, pois ele não testemunhou a ressurreição de Cristo. Sabemos que após a traição, ele se enforcou.

    2º O Conteúdo deve estar em harmonia com os demais livros da Bíblia. Livro algum em desacordo com o padrão doutrinário e moral, ensinado por Jesus e os apóstolos, seria recebido como autoritativo. Foi com base nesta regra que muito livros foram rejeitados pela Igreja. Esse documento em questão que supostamente conteria uma tradução do Evangelho apócrifo de Lucas está em total desarmonia com os Evangelhos. Ele trás a idéia que Judas era o mais fiel dos discípulos de Jesus, e chega a dizer que Judas estava cumprindo apenas ordens do próprio Jesus. Portanto, tornar o traidor em um feitor de boas obras.

    Mas, o que os Evangelhos dizem a respeito de Judas? Vejamos apenas um versículo que mostra o caráter de Judas Isacariotes.

    Em João 12. 3-6 está escrito:

    3 Então, Maria, tomando uma libra de bálsamo de nardo puro, mui precioso, ungiu os pés de Jesus e os enxugou com os seus cabelos; e encheu-se toda a casa com o perfume do bálsamo.
    4 Mas Judas Iscariotes, um dos seus discípulos, o que estava para traí-lo, disse:
    5 Por que não se vendeu este perfume por trezentos denários e não se deu aos pobres?
    6 Isto disse ele, não porque tivesse cuidado dos pobres; mas porque era ladrão e, tendo a bolsa, tirava o que nela se lançava

    Conforme diz o texto, Judas era ladrão! Ele furtava parte do dinheiro que lhe era confiado. Entretanto esse Livro de Judas apresenta-o como sendo fiel. Portanto, esse livro está completamente em desacordo com os Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João. Judas é exatamente os que a Bíblia diz que ele é: ladrão, filho da perdição, avarento e traidor.

    Diante do exposto, chegamos a conclusão que esse livro é espúrio. Não devemos colocar a nossa fé nele. Devemos rejeitá-lo. ESSE EVANGELHO DE JUDAS É TÃO FALSO QUANTO O BEIJO QUE JUDAS ISCARIOTES DEU EM CRISTO.

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  13. Oi, Augustus!

    Comunico aos leitores do seu blog que saiu um artigo meu no Mídia sem Máscara (www.midiasemmascara.com.br) com uma referência no primeiro parágrafo a este post do O Tempora, onde eu o cito nominalmente.

    E estamos na primeira página! :-) Vitória importante para o verdadeiro Evangelho.

    Abração!

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  14. Norma,

    Obrigado pelo link ao seu post, que está muito bom, e traz muitos detalhes sobre esse Evangelho e a mentalidade gnóstica que ele reflete.

    Um abraço!

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  15. Guilherme, obrigado pelo link para seu blog e a menção do nosso post!

    André, João Emiliano, Cleber, Nagel e todos os demais comentaristas, obrigado pelas contribuições preciosas, especialmente aos que acrescentaram links ao final do post.

    Esse post acabou sendo publicado no site da Vida Nova, vejam www.teologiabrasileira.com.br

    Um abraço.

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  16. Obrigado pelo "post". Está muito bom.

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  17. Caro Rev. Augustus,
    através do Rev. Dario Cardoso fiquei sabendo da existência de vosso blog. Permita-me enviar uma de minhas reflexões sobre a Páscoa!
    Abraços,
    Marcos

    O FIM DO NATAL!
    por Marcos Cesaretti

    O Pão da Vida que nos conduz
    À Porta do Aprisco que reluz
    À Paz pelo sangue derramado na cruz.

    O Pão da Vida que reluz
    A Porta do Aprisco que à Paz nos conduz
    Pelo sangue derramado na cruz.

    Cordeiro Precioso
    Maravilhoso Conselheiro
    Verdadeiro Deus
    Luz e Caminho
    Pão e Vinho

    Homem e Deus
    Deus e Homem
    Imagem de Deus
    Jesus Cristo
    Justo Juiz
    Raiz de Davi

    A ti seja todo o louvor
    Bendito Senhor
    Deus de Amor

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  18. Paulo Ramos15/7/09 20:31

    Assim como esse evangelho fajuta e barato, de Judas Iscariotes, os idiotas que crêemm nestas asneiras, se multiplicam>

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