Tudo isso foi precedido por um incansável trabalho de
arrumação, catalogação, rotulagem e triagem realizado por minha esposa e
auxiliares, que levou dias. Com um misto de alívio, desprendimento e tristeza,
ela cumpriu estoicamente essa tarefa. Em algumas noites, eu participava das
avaliações e despedidas dos volumes que marcaram minha vida nesses setenta anos
que completarei daqui a um mês. Em alguns momentos, eu expressava: “não quero
mais olhá-los, pois todos são bons ou proveitosos. Até os ruins são bons,
porque aprendi algo com eles, ainda que fosse como não abordar ou fazer as
coisas”.
Retive uns poucos de valor inestimável, ainda que tenha
doado livros antigos e raros e outros que foram contra as movimentações de um
coração que dizia, “Fica com esse! Fica com esse”. Para outros, minha esposa
dizia, “esses não vão contribuir muito...”. Mas eu insisti, “não, o acordado
foi que iria ‘the good, the bad, and the
ugly’; depois eles fazem a triagem do que desejam conservar”.
E nessa torrente avassaladora “quebra-coração”, foram
teologias sistemáticas de Hodge até Berkhof; as obras completas de John Owen; a
ISBE (International Standard Bible Encyclopedia); clássicos de Dabney,
Warfield, Gill, Baxter; livros de Rushdoony, Schaeffer, Van Til, Van Riesen,
Hebden Taylor; comentários profundos de Lensky Hendriksen, Barnes, Leopold; obras
de autores contemporâneos, como Gruden, Horton, Murray; trabalhos maravilhosos
de importantes teólogos e apologetas do exterior e de conhecidos autores
nacionais, de igual peso e teor. Livros familiares, de caminhos muitas vezes
trafegados, e outros que pareciam selva fechada, ainda a desbravar. Predileções
renovadas, na medida em que eram folheados novamente, e outros que despertavam
centelhas de curiosidade sobre o que as páginas preciosas, que nunca mais serão
por mim perscrutadas, teriam para revelar, sorvido que fui pelas obrigações
intensas que me impedem uma leitura maior.
Por que doá-los, se parte tanto o coração? Aproxima-se a
cada dia a data na qual, algum dia, serei removido do contexto e circunstâncias
atuais, quer geograficamente para outras paragens, quer transcendentalmente
para onde os anos da velhice naturalmente leva a todos (no meu caso, para a
glória eterna). Na realidade, é certo que qualquer uma dessas duas
possibilidades se apresenta com lampejos de muita esperança, confiança,
descanso e conforto na soberania divina. Na realidade, a qualquer momento, e
isso é válido para velhos ou novos, a jornada nesta vida pode ser interrompida
por uma enfermidade, um acidente, pela violência que reina nesse mundo
tenebroso, ou por qualquer outra situação, sempre debaixo do soberano plano
divino e da boa mão de Deus. Mas meus livros cumpriram sua função nessa ligação
de intensa amizade e apreço comigo.
A quem doá-los? Meus três filhos e minha filha estão
espalhados pelo mundo, graças ao bom Deus, cada um servindo a Ele em diferentes
situações, com suas famílias. Inviável deixá-los com eles. Além disso, nesta
era de Amazon, Kindle, eBooks, Logos, etc., muitas bibliotecas pessoais são
supridas por essas vias, ainda que eu insista que nós, seres humanos, somos
essencialmente analógicos e nada substitui a interatividade que temos com um
livro, quando o manuseio é real e não digital. Durante algum tempo pensei em
fazer uma maratona de doações pessoais, a seminaristas e pastores. Ainda que eu
tenha feito isso diversas vezes, os problemas logísticos e de falta de tempo para
continuar com a prática, demonstraram a inviabilidade desse caminho. Cheguei à
conclusão que meus livros estariam mais bem acomodados e com a possibilidade de
beneficiar mais vidas se viessem a ampliar a biblioteca de uma instituição de
ensino teológico, ainda em formação. Procuramos uma que estivesse mais próxima
à nossa residência, desvencilhei-me das amarras, fechei os olhos, tampei o
nariz e mergulhei no escuro.
Por que “meus livros, minha vida”? Porque além deles terem
contribuído significativamente para minha formação e elucidado tantos pontos
importantes da Palavra de Deus, cada um deles tem um significado maior na sua
origem, no seu texto, nas suas páginas iniciais, nas marcações que receberam –
com frases e lembretes, ou apenas com um sutil sublinhar do que mais importava.
“Este aqui foi quando conheci minha esposa; esses outros, foram presentes do
meu sogro; veja esta anotação – eu estava estudando o assunto e derivei várias
palestras desse tópico; este é abominável, mostra como o bom pensar é algo em
extinção; este eu recebi do autor; não posso enviar esses, ainda estou
estudando isso e planejo escrever sobre a matéria; este foi do meu filho e ele
recebeu de presente daquela senhora, que deixou para ele pouco antes de
falecer...”. E assim os momentos iam se sucedendo, na medida em que eu folheava
apenas alguns dos que marcaram cada ponto, cada evento, cada pessoa, cada autor
que fez parte de minha vida. Além disso, fico pensando que mesmo antes de eu
nascer alguns desses livros já tinham sido separados por meus pais para que me
acompanhassem por longos anos.
Muitos foram doados com as dedicatórias originais dos
autores. Tive conflitos, se eu deveria doar esses também. Alguns desses
autografados vieram de autores amigos! Mas era inviável conservá-los, uma vez
tomada a decisão maior. Resta me jogar nos braços da misericórdia e boa vontade
desses, que tão gentilmente me enviaram suas obras, com um sincero pedido de
perdão. Tenham certeza de que os presentes foram muito apreciados, e a doação
em momento algum representa desprezo ou descaso pela dádiva gentil das
preciosidades de suas lavras. Apenas seguirão o fluxo e propósito comum, com os
demais, de abençoarem a muitos, da mesma forma como me abençoaram nesses anos em
que ficaram em minha companhia. Essa é a petição que faço a Deus, bem como que
me devolva a alegria momentaneamente suprimida pela dor da separação.
Solano Portela, 27.09.2017
Caro Presb. Solano. Me despeço também de seus livros. Agora que me dei conta, de que eles me abençoaram. Foi através de sua vida, de suas leituras dos seus livros, que fui abençoado com ensinamentos. Espero que a doação deles, contribua para a formação e instrução de alguém, que como vc, possa abençoar outros. Grande abraço.
ResponderExcluirAcho que assim me sentirei quando tiver que despedir dos meus... obrigada por compartilhar seus sentimentos ao se despedir de amigos tão íntimos. Um abraço querido Solano!
ResponderExcluirNão tenho maturidade suficiente pra isso... Realmente meus livros são minha vida!
ResponderExcluirQue reflexão!
ResponderExcluirPenso que a vida é mais fácil quando agimos com esse desapego recheado de sabedoria.
A ponderação que motivou esse desapego é o que mais tem feito meus neurônios trabalhar: a certeza da partida.
Que Deus continue abençoando sua vida aqui, presbítero!
Mesmo distante, Deus tem abençoado minha vida por intermédio da sua.
Obrigada por compartilhar!
Emocionante... E obrigado pelas carinhosas palavras que nos ensina um pouco essa maravilhosa relação literária com nossos livros.... Com certeza será de grande valia para nossa formação... Sou aluno Smb, muito obrigado pela generosidade. Deus abençoe.
ResponderExcluirTexto (e ação) extraordinário (ri e chorei ao mesmo tempo), Solano.
ResponderExcluirPastor estou com lágrimas nos olhos ao ler suas palavras, Glória ao pai celestial q lhe deu tamanha fé e bondade para compartilhar com o próximo dádivas q um dia ele lhe deu. Que nosso senhor Jesus lhe de abundante mente mais alegria e paz por essa atitude louvável e realmente cristã em dias de tão grande egocentrismo que vivemos. Que Deus seja louvado pela sua vida.
ResponderExcluirCaro pastor, depois de rever todos eles, eu imagino quantas lembranças lhe vieram a mente. É como se despedir dos próprios amigos! Dentre todos, quais os que você considerou de valor inestimável, pelo seu conteúdo? Compartilhe alguns conosco, para que possamos pesquisar sobre os mesmos. Paz de Deus!
ResponderExcluirEm março p.p., depois de intensa luta entre minha razão e meu coração, decidi doar parte dos livros da minha biblioteca. No meu caso, pessoalmente, eu separei, cataloguei, acondicionei em seis grandes caixas, e os levei de São Paulo até o destino deles: Estado de Santa Catarina. Eu os entreguei, virei as costas, e saí. Evitei me despedir deles, pois era bem possível que os trouxesse de volta.
ResponderExcluirPor causa da idade também, irmão?
ResponderExcluirCaro Aluísio:
ResponderExcluirClaro, irmão. Assim escrevi, no texto acima: "Aproxima-se a cada dia a data na qual, algum dia, serei removido do contexto e circunstâncias atuais, quer geograficamente para outras paragens, quer transcendentalmente para onde os anos da velhice naturalmente leva a todos (no meu caso, para a glória eterna)".
Abraços, Solano
ResponderExcluirQuerido Professor Portela. Nosso Deus não dormita. Somente na data de hoje este texto me encontrou. Educadora como diretora de escola por mais de 40 anos, hoje aposentada, mas lider do Ministerio Intanfil em nossa Comunidade. Me identifiquei totalmente com a sua história e não é que já faz um pouco mais de seis anos e o senhor sobreviveu à saudade de tantas histórias e aprendizagens, certamente nosso Deus registrou-as em seu coração...isto me alegra e me encoraja. Obrigada por compatilhar e continuar a fazer parte da minha história! Fraternal abraço!