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quarta-feira, janeiro 11, 2006

Augustus, Arraes e a síndrome do morto que vira herói...

O Augustus postou um relato impagavelmente tragicômico, com uma aplicação melhor ainda (Sobre pitbulls, vira-latas e falsos heróis). Realmente, a vocação para endeusamento dos falecidos tem raízes profundas e não é só no Brasil. Qualquer dia desse termino de escrever um de meus textos bem intencionados, mas nunca acabados: “Martin Luther King: O homem e o Mito”, nada politicamente correto e contrário ao endeusamento subseqüente à sua morte, cujo roteiro e modus operandi foi bem traçado pelo Augustus. Ao ler a postagem, entretanto, não pude deixar de me lembrar de outro falecido recente cujo canonização político-social começou até antes dele morrer, a despeito de registros pouco recomendáveis em sua vida, bem como dos resultados pífios de suas admistrações e ações. Trata-se do cacique político Miguel Arraes de Alencar, falecido em agosto de 2005

Na ocasião eu assistia ao Jornal Nacional da Globo e ouvi o que os americanos chamam de eulogy de Miguel Arraes – ou seja o relato de sua vida e morte e depoimentos de amigos, correligionários e até alguns antigos inimigos. Seguindo a máxima de que a memória da história é curta e a noção popular de que os que morrem encontram expiação para seus pecados em vida, sai-se da apresentação Global com a idéia de que ele foi um santo redentor de Pernambuco – “a maior expressão política do nordeste”, na palavra de um dos depoentes.

Tenho idade suficiente, e essa idade, mesmo conjugada com o seu peso inerente, me dá a vantagem de relembrar por mim mesmo as coisas como realmente foram nas idas e vindas de Miguel Arraes. Eu tinha 17 anos quando o exército o arrancou do Palácio das Princesas, em Recife. Na época eu já trabalhava a poucas quadras do palácio governamental, numa prancheta de desenho, no nono andar de um prédio, do qual observei cada detalhe dos movimentos das tropas nas ruas. Deposto, foi enviado para Fernando de Noronha no que seria transformado em um prolongado exílio na Argélia, de onde retornou com a anistia figueiredista. Voltou ao Palácio das Princesas pelo voto popular para mais dois mandatos, como Governador. Antes disso atuou no Congresso Nacional.

Político matreiro, bem da velha escola clientelista, dava andamento a uma gestão desastrada para o estado de Pernambuco quando teve a carreira interrompida em 1964. A gestão e economia do estado iam de mal a pior, enquanto ele brincava de governar e dedicava-se à sua vertente favorita: liderar as massas das famosas “ligas camponesas” – os “sem terra” da época. Sempre que havia oposição a algum ato dele, ele providenciava inúmeros ônibus que transportavam “espontaneamente”, no melhor estilo das ditaduras populistas, milhares de camponeses do interior às ruas de Recife. Esses marchavam com foices e facões, ameaçadoramente, clamando por um governo proletário. Presenciei mais de uma marcha com esse teor. A população urbana assistia a tudo aquilo meio intrigada, meio amedrontada. O apoio à deposição, que também presenciei, não foi forçado ou artificial - mas intensamente genuíno. Este não veio, obviamente, de agitadores profissionais travestidos de “camponeses”.

Um tio meu, que já faleceu, prefeito por diversas vezes de uma cidade no interior de Pernambuco, foi apoiador ferrenho de Miguel Arraes. Ele também foi cassado. Ouvindo as histórias dele e sobre ele, eu ia compreendendo os conchavos da política, o tráfico de influência, as “trocas” de posições, postos e cargos – tudo isso caracterizava o político matreiro, Arraes. De ideologia, mesmo, transparecia apenas o aproveitamento da situação e do caos geral comandado por Jango.

Abrigado pelo governo esquerdista de Ben-Bella, na Argélia, fez boa fortuna com negócios relacionados com petróleo. Retornando ao Brasil, na década de oitenta, em seus dois mandatos subseqüentes, sempre com um apelo populista, mais uma vez foi chefe de um desgoverno no qual o funcionalismo público, que o havia apoiado triunfalmente na eleição, passou a receber com três a quatro meses de atraso.

Testemunhei tudo isso de longe, pois já não morava mais em Pernambuco, situações de grande penúria e carência. Parentes meus me relatavam as histórias dos intestinos da máquina governamental – que não encontravam muita divulgação, uma vez que a empolgação da mídia concentrava-se apenas nas campanhas das diretas, apresentadas como sendo a resposta à redenção de todos os problemas que enfrentávamos com um governo militar carcomido, autoritário e corrupto. Uma das políticas de Arraes, em seu terceiro mandato, se não me falha a memória, era distribuir vacas com bezerros a moradores do campo. Enquanto isso, obras estruturais, para realmente resolver os problemas do Estado e uma administração austera e honesta, eram coisas deixadas para trás.

Reescrever a história agora, com sua morte, é fácil. A imagem que passará para as gerações será essa: de um homem bondoso, íntegro, uma liderança nata, de ideologia cristalina e de eficiência administrativa. Como lembra o Augustus, o passaporte ao heroísmo vem fácil, com a morte. A realidade dura, entretanto, permanecerá privilégio e tesouro de uns poucos.

5 comentários:

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  2. Solano,

    Por esses dias fui assistir ao documentário Vinícius. Acreditava que certamente haveria uma canonização do poeta, me enganei, e maravilhei-me com um belíssimo filme. Acrescento apenas um dado, ele era um beberrão adorável.

    E nada mais natural do que a sociedade criar de seus líderes semi-deuses, triste, mas rotineiro.

    eu ia compreendendo os conchavos da política, o tráfico de influência, as “trocas” de posições, postos e cargos – tudo isso caracterizava o político matreiro, Arraes.

    Isso me faz lembrar uma R.O.

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  3. Augustus - É verdade, seu pai o conhecia bem. Deus, em sua graça comum, pode nos dar governantes competentes e atentos às funções mínimas e específicas da boa regência - mesmo que esses não o conheçam como Salvador e Senhor. Oro por isso, também.

    Sílvia - Arraes e Maluf? Hmmm... algumas similaridades na matreirice e muitas diferenças. Conhecendo o que conheço hoje, não votaria em nenhum dos dois. Quanto a Kuyper, precisamos que ele seja lido pelos cristãos brasileiros - círculo no qual permanece muito desconhecido, ainda. Imagine que tem alguns que se dizem discípulos de Kuyper e querem a sua bênção para posturas políticas que seriam abjuradas pelo próprio, se estivesse vivo...

    Rômulo - Não vi "Vinícius", mas estou quase naquela situação de só ver em DVD... Quando me animo para ir ver algo, já saiu de cartaz. Aliás, há uns 15 anos, fui ver um show dele, acho que foi no Olympia, em Sampa. Acho que ele foi uma pessoa de enorme talento e uma demonstração do derramar da graça comum de Deus sobre todos os mortais, em uns mais do que em outros (não socialisticamente, não é gozado?). No entanto, tenho minhas reservas quanto ao "beberrão adorável". Ele era mulherengo, sorvedor constante dos distilados e amoral em muitos aspectos. Fico pensando quão "adorável" foi considerada a bebedeira e postura comportamental dele para os seus mais próximos, que tinham de curtir as consequências e as ressacas, ou para as menininhas que seduziu em vida... A questão com Vinícius, é que ele, em função de seu inegável talento, foi canonizado em vida, mesmo.

    Creio que tenho de aceitar como natural que a hora da morte e os funerais não são o tempo apropriado para lembrança das coisas ruins, mas uma hora de registro daquilo que o falecido deixou de positivo nessa terra. Nos funerais de cristãos - é uma hora de saudade, de ações de graças por essas mesmas contribuições e de testemunho sobre a esperança em Deus - aos participantes.

    Mas acho que minha mulher matou a charada. O problema, disse ela, é que "eulogy" se transforma em "biography" - ou seja as palavras positivas viram a biografia perene do morto.

    Por último, fez-lhe lembrar "uma R.O."? Não entendi direito.

    Um abraço e obrigado,

    Solano

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  4. Há um livro de ficção científica chamado Speaker of the Dead pelo autor Orson Scott Card, onde ele propõe que em vez de eulogies (que quase sempre acabam cheias de elogios), alguém próximo do falecido fale por ele, descrevendo sua vida como um todo, com os altos e baixos, erros e vitórias, e dando aos ouvintes uma idéia do que era ser esta pessoa. Conhecendo assim um pouco da sua motivação, do seu pensamento, e das suas razões por fazer o que fez, os que permanecem podem não só se alegrar com os aspectos bons da vida da pessoa, mas também compreender, perdoar, e aprender com os erros, pecados e problemas enfrentados pela pessoa durante a sua vida.

    Achei a idéia muito intrigante. Temos uma tendência a achar que as cerimônias pós-mortem tem que se concentrar apenas no conforto, por causa da fragilidade das emoções. No entanto, é justamente esta fragilidade que também pode ser a oportunidade certa para enfrentar os aspectos menos honráveis da vida do falecido e gerar o perdão. Fiquei pensando sobre como seria a nossa sociedade se fizéssemos isso nos nossos serviços fúnebres. Teríamos menos conforto à princípio, mas não jogaríamos os pensamentos e as conversas sobre os erros do falecido para trás de portas fechadas, onde poderiam continuar a gerar dor e amargura por anos e anos.

    Recomendo a série toda, começando com o livro Ender's Game, que sem dúvida é o melhor da série.

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  5. David:

    Hmmm. Interessante, mas não sei se o funeral com o registro dos problemas e pecados do falecido daria grande ibope e até se seria apropriado. Que temos de perdoar, é certo, mas será que o funeral é hora de levantar as mazelas? Sei não. Acho que fico no meio termo. Nem endeusar e canonizar - como é a prática, nem depreciar - principalmente por que quando criticamos adequadamente alguém, devemos fazer diretamente ao criticado, dando a ele oportunidade de correção. No caso do falecido, ele já está prá lá de Bagdá.

    Obrigado pelo comentário e pela referência do livro.

    Solano

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