“Deus... fez toda a raça humana para habitar sobre toda a face da terra, havendo fixado os tempos previamente estabelecidos e os limites da sua habitação; para buscarem a Deus se, porventura, tateando, o possam achar, bem que não está longe de cada um de nós” (Atos 17.26-28).
Nas palavras de Paulo aos filósofos estóicos e epicureus encontramos uma síntese da visão cristã de realidade: vivemos num mundo criado por Deus, o qual se encontra próximo de nós, embora muitos o procurem como cegos que tateiam seu caminho. Ou seja, vivemos numa realidade aberta.
O quadro que ilustra minha fala é de Francis Bacon – não o filósofo inglês do século XVI, mas o pintor inglês, natural de Dublin, nascido em 1909, falecido em 1992. Controverso, excêntrico, ficou famoso pelos quadros de figuras humanas grotescas, desfiguradas e horrendas, às vezes misturadas com animais. Um dos quadros mais famosos é “Cabeça IV”, de 1949, reproduzido acima. Conforme H. Rookmaker, professor de história da arte da Universidade Livre de Amsterdam, “Os quadros de Bacon são como caricaturas da humanidade, e não imagens humorísticas. São gritos altos de desespero por valores perdidos e grandeza perdida”.
Tomemos este quadro como uma expressão dos sentimentos mais profundos de Bacon e de sua geração, que é basicamente a nossa. O que podemos aprender com o homem na caixa? De que modo ele percebe a realidade?
Primeiro, embora exista uma realidade ao seu redor, ele só pode perceber como real o que se encontra dentro da caixa.
Segundo, seu mundo é fechado. Nada entra e nada sai. Portanto, seu grito é vazio. Ninguém o ouve.
Terceiro, se existir uma realidade além da caixa, e esta resolver responder e se aproximar, o homem na caixa não poderia ouvi-lo.
O quadro de Bacon representa bem a situação do homem moderno após o período do Iluminismo e da prevalência do cientificismo na academia e posteriormente na cultura ocidental. Antes do chamado período moderno, o conhecimento, as artes e a cultura em geral eram influenciadas por uma visão de mundo e de realidade moldada nos princípios e valores do Cristianismo.
O Cristianismo da Reforma protestante, com sua afirmação de que o mundo foi criado por Deus e que funciona seguindo a lei da causalidade, ela própria criada por Deus, havia libertado a mente humana do medo de ofender os deuses pela pesquisa do mundo e da natureza, e havia desfeito a dualidade oriunda do gnosticismo e perpetuada por Tomas de Aquino entre natureza e graça. Tudo isto contribuiu significativamente para o surgimento da cultura ocidental e um renovado apreço pelas artes, juntamente com o Humanismo.
Muitos dos grandes artistas, pintores, músicos, escritores, cientistas e pesquisadores deste período professavam a fé em Deus ao mesmo tempo em que se dedicavam a conhecer, pesquisar, explorar e desenvolver o mundo criado por Deus. Criam num mundo regido por leis naturais, ao mesmo tempo sustentado por Deus e passível de ser tocado pelo Criador, que providencialmente agia no mundo, na vida das pessoas, na história.
Contudo, com o advento da chamada idade da razão – melhor dizendo, do racionalismo, em meados do século dezessete, o homem abandonou esta perspectiva e passou a determinar a realidade através dos sentidos e da razão: só existe aquilo que for perceptível pelos sentidos e comprovado pela razão. Como Deus e o sobrenatural não podem ser comprovados por estes cânones, por mais gentil que ele fosse, foi convidado a se retirar do novo mundo criado pelo racionalismo. O homem constrói ao seu redor uma realidade fechada, um mundo governado pela lei férrea da causa e do efeito, onde a realidade é somente aquilo que a razão e os sentidos podem perceber. O homem se fechou numa caixa. Mas, tudo isto lhe era imperceptível, então, dominado que estava pela euforia de criar um admirável mundo novo, que ele haveria de dominar pelo cientificismo tecnológico.
Passados três séculos, o homem começa a sentir, hoje, os efeitos inevitáveis de estar na caixa. Os sinais disto estão em todo lugar: primeiro, nas artes, que na tentativa de achar sentido para a realidade, resolveu pular fora da caixa, em protesto contra a visão reducionista do positivismo do século XIX, sem contudo saber ao certo o que lhe espera do lado de fora. Artistas como Francis Bacon, e muitos outros refletem o desespero e a angústia das almas mais sensíveis que simplesmente desistiram de entender e expressar a realidade de forma sintética e coerente.
A filosofia, igualmente, foi dominada pelo existencialismo, que em suas mais diversas linhas, convida o homem a uma experiência fora da caixa, experiência que não tenha necessariamente sentido nem razão, e que não seja controlada por conceitos como certo ou errado, muito bem popularizadas pelo famoso filósofo brasileiro
Surge a posmodernidade, que sem negar que a realidade de fato está contida na caixa, contudo contesta a existência da própria caixa, e – por que também não, -- do próprio homem e da realidade ao seu redor.
Propostas religiosas antigas, como o monismo religioso, que vê a realidade como se fosse um tecido único, como se tudo fosse Deus e Deus fosse tudo, ressurgem inclusive dentro da Cristandade mais ampla, como por exemplo, nas 95 teses de Matthew Cox, leigo católico, pregadas na mesma porta de Wittemberg na Alemanha mês passado, onde diz na tese número seis: “A idéia de que Deus está acima ou além do universo é falsa. Tudo está em Deus e Deus está em tudo”.
Tudo isto, e outras coisas mais, é o grito tremendo do homem na caixa. O homem moderno não consegue mais viver dentro dela. Quer respostas, quer sentido, quer razões, quer ser ouvido.
O que tudo isto tem a ver conosco? Creio que nosso maior desafio consiste nestes três pontos. Primeiro, perceber que boa parte do desespero e do vazio existencial hoje reinantes nas mentes e corações de todos, apesar das grandes conquistas intelectuais e advanços tecnológicos da humanidade, provém de uma visão reduzida da realidade, uma visão que pode muito bem ser exemplificada com a pintura de Francis Bacon.
Segunda, que talvez devêssemos considerar o passado e a história e aprender com aqueles que, sem negar a intelectualidade, a objetividade científica e a respeitabilidade acadêmica, estavam preparados para aceitar que a realidade é mais ampla e mais profunda do que aquilo que percebemos, vemos, ouvimos, tocamos e comprovamos. A caixa precisa ser aberta. Há um mundo maravilhoso, rico, misterioso e plenamente satisfatório lá fora.
Não os convido a saltar da caixa no escuro. Mas recomendo às suas mentes brilhantes e privilegiadas o Cristianismo bíblico, como uma visão de mundo e realidade que contempla e abrange a realidade de uma forma muito mais completa, e onde Deus não está longe de nenhum de nós.
Dr. Augustus,
ResponderExcluirjá havia lido esse texto assim como outros nas suas homilias expostas no site do mack. Muito bons por sinal e ajuda o estudante cristão a conciliar sua fé e a beleza do evangelho com o mundo acadêmico (coisas que só o iluminismo mesmo para dizer que são excludentes).
O engraçado é que positivistas liberais dizem que somos (confessionais-conservadores) fechados, mas na verdade eles que se encontram dentro da caixa achando que o mundo é fechado guiado pela dinâmica da causa e e efeito.
Que o Senhor de graça a eles para abrirem os olhos e serem libertos da cegueira espiritual e nos mantenha firmes na fé para buscar entendimento da Palavra e da criação.
Pr. Augustus,
ResponderExcluirParabéns pelo texto.
Tendo sido reformado por Deus a cerca de um ano, não é de agora que leio sobre cientistas, filósofos e artistas cristãos.
Mas eu, como interessado em pesquisa que sou, gostaria de saber que cientistas eram cristãos na época citada por você.
Me parece que Pascal era cristão mas não sei ele é o mesmo do "princípio de Pascal" da física.
Gostaria de dizer também que faz-se necessário que mais cristãos reformados se voltem hoje para a pesquisa científica para que se acabe a idéia popular do cientista ateu.
Um abraço,
João
Reverendo Augustus, parabéns!
ResponderExcluirSeu post revela a incomparável amplitude do cristianismo àqueles que crêem em verdadeiros dogmas científicos que aprisionam seus seguidores na falsa percepção de um mundo sem barreiras quando, na verdade, impedem seus próprios corações e espíritos de conhecerem os verdadeiros e mais importantes mistérios, antes ocultos, e agora revelados na pessoa de Cristo.
Um grande abraço,
Jorge
Dr. Augustos, parabéns pelo post. Apesar de apreciar muito o seu pensamento, sinto saudades das idéias do Pb. Solano e do Rev. Mauro, mas enquanto não temos novas postagens deles, nos deleitamos com o seu trabalho.
ResponderExcluirComo dizia Shakespeare: "Há mais coisas entre o céu e a terra, do que possa supor a nossa vã filosofia".
Tenho enfrentado em nível acadêmico, pessoas assim, que "encaixotam" o pensamento dentro de compartimentos estanques ao seu bel prazer, que defendem as suas próprias idéias e criticam o contraditório. Parece que nós, os que lemos à Bíblia a partir do entendimento de que ela (A Escritura), é a Revelação de Deus, somos idiotas, religiosos nocivos ao desenvolvimento da sociedade e fundamentalistas radicais que odeiam as minorias e estamos prontos a dizimá-las através de uma limpeza étnica. Às vezes eu sinto que pensam isso de mim.
Esse post vem esclarecer muito acerca do pensamento cristão, de que não é desprovido de intelectualismo e que tem alternativa para o pensamento sociológico. Parabéns.
Rev. João d'Eça
Muito bom, Augustus! Gostei de ver você "schaefferiando". :-) Tomara que faça isso mais vezes!
ResponderExcluirAbração!
Juan, Jorge, João (parece até trio latino) e a Norma,
ResponderExcluirObrigado pela força e pela apreciação!
João de Séllos,
ResponderExcluirA Nancy Pearcey, quando esteve no Mackenzie, exibiu na sua apresentação uma lista de cientistas, estudiosos, scholars e eruditos que professavam o Cristianismo em maior ou menor medida. Alguns eram católicos e outros protestantes. eles são do século XVI até início do século XVIII. Devout é alguém comprometido com a fé cristã, e conventional é o que apenas frequentava a Igreja ou se declarava cristão:
Bayer, Johann (1572-1625) Devout
Borelli, Giovanni (1608-1679) Conventional
Boyle, Robert (1627-1691) Devout
Brahe, Tycho (1546-1601 Conventional
Briggs, Henry (1561-1630) Devout
Cassini, Giovanni (1625-1712) Conventional
Copernicus, Nicolaus (1473-1543) Conventional
Descartes, René (1596-1650) Devout
Fabricus, David (1564-1617) Devout
Fallopius, Gabriel (1523-1562) Devout
Fermat, Pierre (1601-1665) Conventional
Flamsteed, John (1646-1719) Devout
Galilei, Galileo (1564-1642) Conventional
Gassendi, Pierre (1592-1655) Devout
Gellibrand, Henry (1597-1663) Devout
Gilbert, William (1540-1603) Conventional
Graaf, Regnier de (1641-1673) Conventional
Grew, Nehemiah (1641-1712) Devout
Grimaldi, Francesco (1618-1663) Devout
Guericke, Otto (1602-1686) Conventional
Halley, Edmund (1656-1742)& Skeptic
Harvey, William (1578-1657) Conventional
Helmont, Jan Baptista van (1577-1644) Devout
Hevelius, Johannes (1611-1687) Conventional
Hooke, Robert (1635-1703) Devout
Horrocks, Jeremiah (1619-1641) Devout
Huygens, Christiaan (1629-1695) Devout
Kepler, Johannes (1571-1630) Devout
Kircher, Athanasius (1601-1680) Devout
Leeuwenhoek, Anton (1632-1723) Conventional
Leibniz, Gottfried (1646-1716) Devout
Malpighi, Marcello (1628-1694) Conventional
Mariotte, Edme (1620-1684) Devout
Mersenne, Marin (1588-1648) Devout
Napier, John (1550-1617) Devout
Newton, Isaac (1642-1727) Devout
Oughtred, William (1575-1660) Devout
Papin, Denis (1647-1712) Devout
Paracelsus (1493-1541) Skeptic
Pascal, Blaise (1623-1662) Devout
Picard, Jean (1620-1682) Devout
Ray, John (1628-1705) Devout
Riccioli, Giovanni (1598-1671) Devout
Roemer, Olaus (1644-1710) Conventional
Scheiner, Christoph (1575-1650) Devout
Snell, Willebrord (1591-1626) Conventional
Steno, Nicolaus (1638-1686) Devout
Stevinus, Simon (1548-1620) Conventional
Torricelli, Evangelista (1606-1647) Conventional
Vesalius, Andreas (1514-1564) Devout
Vieta, Franciscus (1540-1603) Conventional
Wallis, John (1616-1703) Devout
Michael Faraday (1791-1867) Magnetic Theory
Charles Babbage (1792-1871) Computer Science
Louis Agassiz (1807-1873) Glacial geology, ichthyology
James Young Simpson (1811-1870) Gynecology
Gregor Mendel (1822-1884) Genetics
Louis Pasteur (1822-1895) Bacteriology
William Thomson (Lord Kelvin) (1824-1907) Energetics, Thermodynamics
Joseph Lister (1827-1912) Antiseptic surgery
James Clerk Maxwell (1831-1879) Electrodynamics, statistical,thermodynamics
William Ramsey (1852-1916) Isotopic Chemistry
João de Séllos,
ResponderExcluirA lista da Nancy foi tirada de um estudo que está na Internet em inglês, excelente, uma comparação de três cosmovisões da ciência e da realidade, em http://chfpn.pl/index/?id=8b5040a8a5baf3e0e67386c2e3a9b903
abraços
Augustus Nicodemus,
ResponderExcluirObrigado pela lista.
Vou copiá-la e pesquisar alguns nomes. Usarei a lista certamente.
Um abração.
Dr. Augustus,
ResponderExcluiraproveitando o bom humor fica a sugestão de formarmos um grupo musical latino com arte contemporânea numa perspectiva schaefferiana como bem disse a Norma (risos).
Obrigado pela lista dos cientistas cristãos. Blaise Pascal tem um livro chamado "Pensamentos" editado pela martins fontes. Já fucei alguma coisa de Leibnz e ele faz mesmo referência a Bíblia. Francis Bacon também o faz em Novum Organum, eu tive que ler esse texto no seminário e ele interage bastante com as Escríturas sub-entendendo que ele acreditava nela. Mas parace que sua biografia tem alguns equívocos, mas se eu pudesse, perguntava a Nancy Pearcei se ele poderia ser incluído e qual seria a classificação nessa tipologia Conventional-devout proposta por ela, que por sinal, foi esclarecedor para nós todos.
Abraços,
Juan
Augustus. Excelente reflexão, conforme todos anteriormente já expressaram.
ResponderExcluirGostaria que você indicasse aonde posso buscar informações atualizadas e confiáveis nos sites da internet, digo isso pela informação que você publicou a respeito da porta de Wittemberg na Alemanha mês passado, onde foi publicado 95 teses conforme você expôs no seu texto...
Grande comentario mestre Augustus se schaeffer estivesse aqui diria o mesmo.
ResponderExcluirUm abraço desse cearance q lhe admira e aprende com o irmão.