Eu tenho uma amiga que cria três pitbulls em casa. Ela mora à beira mar, aqui em Recife, onde eu e minha família estamos passando as férias. Ela me contou que acidentalmente deixaram o portão da casa aberto e Atos, o pitbull macho, enorme, saiu para a rua. Seu alvo era um vira-lata pulguento, matreiro, o dono do pedaço, que passava o dia deitado ao lado de uma barraca de vender cachaça, bem na beira da praia. O tal vira-lata (em São Paulo é fura-saco) já havia batido em todos os cachorros da área. Num piscar de olhos, Atos tinha o infeliz pelo pescoço. A praia estava cheia de gente. O pitbull não se interessou por ninguém, só pelo pulguento. Sacudiu-o pelo pescoço como se fosse uma boneca de pano. Juntou gente ao redor, armada de paus, foices, garrafas quebradas... tentaram de tudo para apartar a briga. Jogaram até uma bicicleta no pitbull.
Atos não largou a vítima até que a filha de minha amiga, uma adolescente de dezesseis anos, ouvindo a confusão, chegou e deu voz de comando, “Atos, solta!” O cão obedeceu imediatamente. Largou o trapo de carne sangrenta aos pés da dona e ficou sentado olhando interrogativamente para ela. Prevendo um linchamento, a adolescente disse ao pescador, dono do cão morto, que se aproximava com uma foice: “Pode atacá-lo se quiser, mas não me responsabilizo pela reação dele. Ele não atacará pessoa alguma. Por favor, deixem-nos passar”. E saiu do meio da multidão, acompanhada pelo pitbull com a cara manchada de sangue. Naquela noite, jogaram o cadáver do vira-lata no jardim da casa da minha amiga, por cima do muro. Minha amiga está respondendo a uma denúncia que foi feita contra ela por descuido. Graças a Deus, Atos, que foi criado com as três filhas dela, não atacou um ser humano.
Mas há algo no incidente bastante instrutivo. No dia seguinte à morte do vira-lata, saíram duas notas nos jornais locais: “Família cria pitbulls em casa e aterroriza vizinhos”. Uma das notas descrevia a luta entre os dois cães. O vira-lata virou herói: “morreu tentando salvar seu dono da fera enlouquecida”. Quase morro de rir da notícia. Especialmente do vira-lata matreiro, que provavelmente nunca cometeu um ato de heroísmo em toda sua vida. Virou herói na morte.
Curiosamente, ontem a noite estava assistindo o filme Daylight com o péssimo ator Silvester Stalone. Um bandido condenado havia se ferido mortalmente dentro do túnel desabado. Sabendo que ia morrer, pede aos circunstantes que digam ao seu pai que ele havia morrido tentando ajudar os outros. Um deles diz, “Vou dizer ao seu pai que você morreu como herói”. A face do bandido anuviou-se. “Ele não vai acreditar em você”, gaguejou em voz sumida, e expirou. O pai conhecia o filho que tinha. Não acreditaria que morrera herói. Eu também conhecia aquele vira-lata de outras férias. Não acreditaria na notícia do jornal.
A humanidade gosta de transformar em heróis gente comum que morreu em circunstâncias trágicas. Às vezes, até bandidos viram heróis. Ou então, os pecados são esquecidos, como que lavados no sangue do martírio. Quantos lembram que Padre Anchieta ajudou a enforcar em São Vicente o reformado Jacques le Balleur, o único sobrevivente do massacre dos protestantes da baía da Guanabara? Todos esqueceram das heresias cristológicas de Miguel Serveto, condenadas até pela Igreja Católica, quando lamentavelmente foi queimado em Genebra, na presença de Calvino. Às vezes, não precisa nem morrer. Recentemente, realizou-se um encontro de teólogos e filósofos protestantes e católicos no Brasil que tinham em comum o fato de que foram todos expulsos, repreendidos ou disciplinados por suas igrejas. Foram apresentados como mártires e heróis. Essa era a bandeira do encontro. E das heresias pelas quais (alguns) tinham sido apenados, ninguém se lembrou mais...
Onde a morte e o sofrimento forem vistos como sacramento, gente comum será beatificada. No Brasil, até os evangélicos têm alma católica.
Como Deus nos protege?
Há 2 dias
11 comentários
comentáriosRené Girard, do qual li pouco, mas do que li, gostei muito, fala do "totalitarismo da vítima". Basta se posicionar como vítima ou se identificar com ela que logo qualquer uma de suas reivindicações será atendida incondicionalmente.
ResponderÉ desse mecanismo que as tais 'minorias discriminadas' se valem para reivindicar tutela estatal, e assim tornam-se peças-chave ao que visam a implantação do estado totalitário sobre o qual reinará o Anticristo.
E o que dizer do endeusamento de um vira-latas como Ernesto 'Che' Guevara, playboy que foi ministro da Fazenda de Fidel? Vale lembrar que ele defendia a idéia de que “o ódio é um elemento da luta – ódio impiedoso ao inimigo, ódio que ergue o revolucionário acima das limitações naturais da espécie humana e faz dele uma eficiente, calculista e fria máquina de matar."
Triste é ver nas igrejas jovens com camisetas com o rosto desse assassino, influenciados pelas abomináveis idéias da dupla Betto/ Boff.
Oi, Augustus,
ResponderEmbora saiba que a história do pitbull é só uma ilustração do que você realmente queria dizer, mas, a sua amiga vai ter que indenizar o dono do vira-latas. É até bíblico, se um boi escorneador mata um outro boi, é preciso que haja indenização.
Um vira-lata não vira um cão de raça no momento em que morre. Mas nem por isso a morte de um vira-lata é sem importância. E pit-bulls não podem fazer o que quiserem. Vira-latas não pode morrer apenas porque são cachorros.
Se é verdade que não podemos nos esquecer dos pecados de Anchieta ou Servetus, e de tantos outros hereges que existem em nosso meio, também não podemos fechar os olhos quando pessoas são condenadas injustamente, ou quando elas recebem uma pena desproporcional aos seus atos.
Abraços,
Helder Nozima
Barro nas mãos do Oleiro
Acho que funciona assim: o povo pobre e sofredor, se vê na imagem de algum personagem que sofre e aí cria-se meio que um sentimento messiânico, sei lá. Daí o povo atribui o sofrimento desse tal personagem como libertador, esperando que ele mesmo experimente essa libertação pelo sofrimento.
ResponderÉ até engraçado porque, de alguma forma, há em nosso meio, fruto de uma cosmovisão "cristã", medieval, eu diria, essa idéia da divinização do pobre e do sofrimento. Basta ser pobre, sofredor pra ser alguém que Deus olha, cuida, algo assim.
Obrigado pelo texto!
Abraços.
Oi, Helder,
ResponderDesculpe-me, eu não quis dar a impressão que o vira-latas era menos, digamos, humano, que o pitbull. Eu quis apenas enfatizar como um cão matreiro, brigão, preguiçoso, ao morrer nos dentes de um mais forte que ele, acaba virando herói. E fiz um paralelo com a vida real e com a história.
A minha amiga é muito zelosa das leis do país. Sempre cuidou muito bem dos cães. O que houve foi um descuido causado por alguém (que ainda não foi identificado). Ela certamente indenizará o dono do vira-latas, tão logo ele apareça e peça o valor do cão assassinado. E é claro que pitbulls não podem fazer o que desejam.
Agora, se o vira-latas recebeu uma pena proporcional aos seus atos, realmente não sei dizer. Se no reino animal existir a pena de morte para a vadiagem, para o roubo e para espancar e aleijar outros animais, até pode ser que o referido vira-latas acabou encontrando o seu destino... essa vou ficar devendo.
Um abraço.
Nagel,
ResponderNão me recordo que teológo da libertação disse que "ser pobre é sacramento"...
Um abraço.
Eliot,
ResponderÉ uma aplicação interessante a que você faz. Creio que poderíamos ampliar a lista de personagens que viraram heróis por algum estranho acaso da história. Penso que em tudo devemos manter em mente o fato da total depravação humana, da qual participam os heróis, as estruturas que os beatificam, a mídia que os divulgam e o povo que os adoram. Ou seja, glória somente a Deus.
Gente, que horror meu português no último comentário que postei! "Penso que em tudo devemos manter em mente o fato da total depravação humana, da qual participam os heróis, as estruturas que os beatificam, a mídia que os divulgam e o povo que os adoram. Ou seja, glória somente a Deus."
ResponderBem que meu sogro, DR. Frans Leonard Schalkwijk, me dizia sempre: "Cuidado para que a Palavra não seja prejudicada pelas palavras". Ele se referia ao fato que o português ruim poderia afetar a eficácia de um bom conteúdo evangelístico ou teológico.
Perdoem a falta de concordância... nem num blog se permite isso!
Abraços.
Eu só gostaria de saber se os pastores e padres daquele congresso explicaram porque foram punidos. Eu gostaria de citar um exemplo: o dr. R. T. Kendall, sucessor de Lloyd-Jones, disse que estava sendo criticado por causa de que permitiu que Arthur Blessit pregasse de calças jeans na Capela de Westminster (veja o livro dele "A Unção", ed. Betânia). No início dei algum crédito a ele, mas depois resolvi verificar aquele artigo sobre ele de Anglada e vi realmente o porquê de ele ter sido tão criticado. O "mártir" Kendall, ha!
ResponderEu também gostaria de lhe mostrar uma coisa: foi feito um artigo sobre você na wikipédia, http://pt.wikipedia.org/wiki/Augustus_Nicodemus_Lopes, depois você dá uma olhada para ver se está bom. Aproveita e acrescente alguma coisa sobre Lloyd-Jones.
Rafael Galvão
Rafael,
ResponderDei uma olhada na Wikipedia e -- surpresa! -- lá está meu profile. Obrigado pela dica.
Abraços.
Parece que sofremos de uma
Responder"sindrome de divindade"
Queremos agir pela nossa propria graca e misericordia, esta ai o problema, em nossa imperfeicao atropelamos a justica de Deus, o tornamos injusto nos seus julgamentos e apresentamos o "pseudo-amor cristao", que so contribui para a marcha da apostasia.
Sinais dos tempos.....so pode ser!!!