Ainda nesta série de posts, e complementando o anterior quero colocar um pequeno comparativo com a teologia da reforma. Alguns me perguntaram se não existia qualquer contribuição positiva da neo-ortodoxia. Acredito que houve alguma. Afinal, Barth deu uma sacudidela na esterilidade do pensamento teológico corrente e insistiu que o liberalismo clássico era inadequado – não glorificava a Deus nem atendia às necessidades das pessoas.
Entretanto, paulatinamente, a neo-ortodoxia foi introdutora de um subjetivismo danoso. Nesse sentido, ela facilitou o adentramento da compreensão pós-moderna no campo teológico e com ele o conceito da relativização da verdade, ou pluralização de "verdades" ("minha verdade não é a sua verdade"; ou, "afinal, existe a verdade?"). Isso levou a um afastamento progressivo dos pontos defendidos pelos reformadores.
Vejam essa tabelinha comparativa com os cinco solas da reforma:
Percebem que a questão não é a rejeição explícita dos pontos, mas a redefinição deles e a visão subjetiva introduzida onde deve existir objetividade? Por esta razão a neo-ortodoxia torna-se tão querida da mente teológica contemporânea - permite o linguajar doutrinário clássico, mas cada um vai colocando nele o significado segundo a sua apreensão da religiosidade. Perdem-se no ar, portanto, as âncoras metafísicas proposicionais e a possibilidade de um diálogo ou argumentação com real significado.
Como Deus nos protege?
Há 2 dias
11 comentários
comentáriosSolano..
ResponderEu vejo que a neo-ortodoxia com o subjetivismo da verdade acaba por relativizar muitos conceitos.
A minha denominação ensina neo-ortodoxia nos seminários..acredito que todos, qual seria a consequencia desse ensino? Qual seria o impacto sobre seus membros?
Mesmo que existam tais desvios da reforma, o que importa não é apenas a pregação do evangelho?
Estou perguntando isso, pois é frequentemente dito pelos neo-ortodoxos...
Abraços
JP
Caro JP
ResponderA consequência do ensino é a diluição da mensagem e, como tenho afirmado, desaparecendo os significados dos termos e das doutrinas, estamos falando, afinal, de que evangelho?
Isso nos leva à segunda pergunta, ou colocação que é feita: "o importante não seria pregar o evangelho"? É impossível divorciar evangelho de sã doutrina.
Veja como Paulo trata essa questão em duas passagens: A primeira está em Filipenses 1.12-18; A outra situação é encontrada na carta aos Gálatas (1.6-9).
Em Filipenses, Paulo fala que a sua prisão resultou no progresso do evangelho e muitos passaram a proclamar a mensagem. Essas pessoas agiam de “boa vontade” (15) e “por amor” (16). Entretanto, Paulo tinha plena ciência que alguns se aproveitaram do fato dele estar preso e passaram a evangelizar não por zelo, mas por “inveja e porfia” (15) Provavelmente pretendiam se sobressair e, quem sabe, tomar até o lugar de Paulo, na liderança das várias igrejas visitadas.
O impressionante, é que Paulo registra o fato mas, friamente, ele analisa que ele é o único que está sendo prejudicado, pois estes últimos pregavam “por discórdia, insinceramente, julgando suscitar tribulação às minhas cadeias “ (17) Este prejuízo pessoal, ele não levava em consideração (“para mim o viver é Cristo, o morrer é ganho... Fp 1.21”) e chega a admirável conclusão (18): “Todavia, que importa? Uma vez que Cristo de qualquer modo, está sendo pregado, quer por pretexto, quer por verdade, também com isto me regozijo, sim, sempre me regozijarei.”
Não é que os motivos não fossem importantes — ele elogia a atitude e a motivação dos que pregavam em sinceridade. Mas a preocupação central de Paulo era com o conteúdo do evangelho, e aqui não há qualquer indicação que os motivos (quer de boa vontade, quer em insinceridade) ou os métodos (Cristo de qualquer modo, está sendo pregado) adulteraram a mensagem cristalina do Evangelho da Graça, pois Cristo era pregado (v. 17). Paulo, então, se alegra, se regozija! Calvino disse, sobre este trecho: “Paulo não diz nada aqui que eu mesmo não tenha experimentado” (citado em Lensky - Intepretation of St. Pauls’ Epistles - Phillipians, p. 729)
Em Galátas, entretanto, Paulo fala de crentes que estão desenvolvendo um ministério paralelo ao seu, indo de igreja em igreja pregando. Verificamos, entretanto, que a reação de Paulo é diferente daquela expressa na carta aos Filipenses, no v. 6 ele mostra uma profunda perturbação interna – "estou assombrado" demonstrando grande admiração que os membros daquela igreja estivessem mudando rapidamente de convicções. A afeição e lealdade estava sendo colocada em outra doutrina, pois estavam dando ouvidos a "alguns" (v. 7) que perturbavam e queriam perverter o evangelho de Cristo. Pregavam um outro evangelho. Paulo referia-se, sem dúvida, aos judaizantes que pretendiam adicionar algumas coisas "palpáveis, visíveis", à simples pregação do evangelho. Quem sabe eles diziam que era apenas uma questão de método? Talvez fosse muito mais atraente, desse mais substância, ou talvez até, mais emoção ao evangelho. Estas pessoas se apresentavam com autoridade e se propunham a declarar o método de salvação. No v. 8, Paulo dirige-se ao fundo do seu extenso vocabulário Grego para classificar estas pessoas e lança uma fortíssima condenação. Independentemente de quem quer que seja: estas pessoas, ele próprio, ou até um anjo do céu—se vier trazer um evangelho que vá além (note que não era necessariamente diferente na aparência, mas com algumas coisinhas adicionadas) daquele que eles tinham previamente ouvido da parte dele, tal pessoa deveria ser considerada anátema (isto é: amaldiçoado). Estas palavras contêm uma terrível responsabilidade a nós que fomos comissionados a pregar e a transmitir as verdades de Deus.
Podemos negligenciar o aviso contido e pensar que Paulo se referia somente à sua situação específica. Afinal, não temos mais judaizantes em nosso meio! Muitos de nós chegam a fazer, corretamente, a aplicação destas palavras à pregação da Igreja Católica Romana, como suas adições e condições anexadas à Graça salvadora de Cristo. Isto não basta, porque com pouca freqüência paramos para analisar o que está acontecendo no campo chamado "evangélico" e aqui, tristemente, mas não raramente, encontramos a proclamação de "outro" evangelho.
Muitos de nós temos um julgamento ingênuo ou caridoso em excesso (com uma brandura que se contrapõe à severidade de Paulo)— com relação ao que está acontecendo na esfera de proclamação do evangelho. Paulo poderia ter particularizado a questão, especificado quem ele combatia, mas quis o Espírito Santo, em sua soberania, deixar a colocação de forma genérica, de tal modo que o princípio fosse enfatizado — não podemos mexer com o cerne do evangelho.
Na epístola aos Filipenses, Paulo mostrou-se bastante tolerante com relação àqueles que pregavam a Cristo até com o motivo errado, mas sem adulterar o conteúdo da mensagem. No trecho examinado da carta aos Gálatas, Paulo demonstra total intransigência com relação aos pregadores por ele mencionados. Porque as duas atitudes diferentes de Paulo? Será que ele, na prisão, quando escreveu Filipenses, estava cansado e já não se importava mais? Não! O conteúdo do evangelho estava em jogo, na segunda situação, por isso ele reage violentamente e condena esta situação com a mais forte das palavras.
Em outra carta, (2 Co 11.3 e 4), Paulo se refere mais uma vez ao perigo apresentado pela pregação de um outro evangelho, que sutilmente acha aceitação naquela igreja: “Mas receio que, assim como a serpente enganou a Eva, com a sua astúcia, assim também sejam corrompidas as vossas mentes, e se apartem da simplicidade e pureza devidas a Cristo. Se, na verdade, vindo alguém prega outro Jesus que não temos pregado, ou se aceitais espírito diferente que não tendes recebido, ou evangelho diferente que não tendes abraçado, a esses de boa mente o tolerais”.
Temos que resgatar, hoje em dia, exatamente isto: a simplicidade e pureza devidas a Cristo e ao Seu evangelho da graça. Que Deus nos ajude a assim proceder e pregar, por Sua infinita misericórdia! Não basta só falar que o importante é pregar o evangelho - o nosso evangelho é o evangelho de Paulo (Paulo se refere a ele dessa forma - "o meu evangelho")? Se não for, se as definições forem outras, se a ressurreição não for importante - como fato histórico - como Paulo a substanciou em 1 Cor 15, então as palavras são vazias e sem sentido - estamos com um "outro" evangelho. Esse é o perigo real!
Solano
Caro Solano,
ResponderApesar da neo-ortodoxia ser considerada importante naquele momento histórico de liberalismo, ela parece ter pavimentado o caminho do relativismo e reinterpretação das Escrituras por parte do neo-liberalismo.
Se isso for verdade, e eu creio que o é, a neo-ortodoxia nada mais foi do que mais um evangelho anátema não diferente do liberalismo ou do neo-liberalismo.
O correto seria a volta da ortodoxia, as bases da reforma, ou seja, o retorno as Escrituras como inerrantes que nos apresentam Cristo como o único caminho para Deus, que seria dado soberanamente aos eleitos.
Um abraço
Olá, Solano
ResponderVendo a tabela amarelinha, percebo que há muitos sedizentes reformados que, ao se confrontar com antropólogos, historiadores e filósofos logo escorregam para os pressupostos da neo-ortodoxia, sobretudo no tocante ao "Solus Cristus".
Acho que até eu já fiz dessa, em outros tempos...
Aproveito o comentário para parabenizá-lo e incentivá-lo a escrever mais política. Estou pensando em fazer um post baseado em seus artigos Socialismo na Bíblia - Mitos e Verdades e Insegurança e Comoção Social. No post, provavelmente lançarei a campanha "SSS" - Senta o Sarrafo, Solano", he he he.
Falando sério, é difícil encontrar articulistas que tratem de política com tanto rigor bíblico. E isso é uma das coisas que mais se precisa nesse país.
Abraço fraterno!
especificamente sobre Barth, ele diz: "Deus se revela como Senhor" que tipo de problema essa declaração pode apresentar por haver empregado uma linguagem predominantemente masculina em relação a Deus?
ResponderCaro João de Séllos:
ResponderVocê tem toda razão. A resposta é simplesmente o retorno à ortodoxia e à noção que obtemos conhecimento religioso através da verdade proposicional das Escrituras. Não sabemos exaustivamente a verdade (toda verdade que pode ser sabida), mas podemos, sim, ter acesso e confiança à verdade (o que dela compreendemos subsiste o teste da veracidade).
Solano
Caro Eliot:
ResponderÉ isso mesmo. Existe uma multidão, por aí, apresentando Barth como bastião da fé reformada e até outros, realmente nocivos e simplesmente descrentes da Palavra, como Tillich, são indicados como pilares da fé.
Obrigado pelas palavras de estímulo. Espero que desenvolva aqueles posts além de onde foram. Se Deus permitir pretendo abordar mais a cena política do ponto de vista da Palavra.
Abs
Solano
Caro Lindobergh:
ResponderNessa Barth está inocente! Qual o problema no emprego de uma linguagem predominantemente masculina em relação a Deus?
A Bíblia faz exatamente isso, para o desespero e horror da espúria teologia feminista. Pronomes masculinos são utilizados no hebraico e grego como referência à divindade. Se a intenção fosse indicar qualquer isenção de identificação com um dos sexos, por que não utilizar o pronome neutro, no grego?
Cristo é obviamente figura masculina - nenhum problema com isso. No relacionamento com a Igreja, ele não é mãe, mas o noivo. Deus é identificado como sendo PAI (e não mãe).
Essa tentativa de dissociação da identificação da divindade com a figura masculina, ou, pior ainda, a releitura dos textos (e desprezo por sua autenticidade e autoridade), com a identificação sexista e preconceituosa trazendo a feminilização da divindade, é mais um desses modismos absurdos, inconsequentes, ilógicos e intensamente anti-acadêmico, pois maior que seja a auréola de respeitabilidade que queiram atribuir a ele.
Abs
Solano
Não sei se já disse isso aqui, mas James Houston "arrasa" com Paul Tillich falando sobre a quantidade de material pornográfico que ele tinha escondido nas gavetas... A esposa só descobriu depois que ele morreu!
ResponderGosto dessa abordagem de Houston, porque a coerência entre teoria e vida é um dos indicativos dos bons autores cristãos. Se todo autor cristão acaba sendo meio guia espiritual, a falta de transparência (pecado escondido) e integridade (cultivo desse pecado) depõe muito contra ele. Acho muito esquisito um teólogo cristão com monstrinhos escondidos na gaveta.
E se o teólogo "moderninho" vem dizer que "todo mundo tem monstrinhos na gaveta", alto lá! Uma coisa é admitir monstrinhos de vez em quando (e ficar mortificado quando isso ocorre), outra bem diferente é mantê-los até a morte. Pecar todo mundo peca, mas insistir no pecado (escondido) é outra história... Creio que a vida com Deus é uma vida de desnudamento contínuo (nós escondemos nossa feiúra, mas Deus nos torna paulatinamente belos como Jesus), e algo desse desnudamento acaba sempre se refletindo no que dizemos ou escrevemos.
Estou adorando essa série sobre a neo-ortodoxia, muito instrutiva (e assustadora, na verdade, por causa dessa aproximação com o relativismo moderno)!
Abração!
Caro Solano,
ResponderNão sei onde li que até o Espírito Santo é identificado com a figura masculina ao ser o quem gera o Filho de Deus em uma mulher: Maria.
Digo isto, pois há aqueles que dizem que o Espírito Santo fosse a parte feminina da Santa Trindade. Levado às últimas conseqüencias este argumento até se pode tornar desconcertante.
Caro Charles:
ResponderCom efeito, a Bíblia assim o apresenta. Essas re-leituras da Bíblia são desconcertantes e fazem violência ao texto original. É claro que elas procedem dos campos que acatam a Bíblia apenas como uma coletânea de escritos humanos totalmente condicionados pelo seu tempo e cultura. Dizem que, por essa razão, a cultura machista (ou homófoba) domina os termos e temas dela. Não há qualquer aceitação da doutrina da inspiração e, muito menos, de inerrância. Ficam, portanto, sem a integridade do texto e com total liberdade de postular qualquer coisa ou interpretação, como sendo a correta. No final, os pensamentos da moda são introjetados sem cerimônia no texto Bíblico e as convicções teológicas não são mais extraídas do texto, mas meramente de uma leitura das condições sociais ou sociológicas de então e do presente. A grande pergunta que devemos fazer é - de que serve esse texto só como pretexto? Por que não, simplesmente, postular as questões de fé, de acordo com o que se entende ser a necessidade das pessoas em um dado momento?
Abs
Solano