Num post anterior eu disse que escreveria mais sobre a declaração: “em termos de conteúdo, o barthianismo tem pouca coisa em comum com a ortodoxia histórica da Igreja”. Quando me refiro à ortodoxia histórica, quero dizer as crenças clássicas do Cristianismo histórico, inicialmente confessadas no Credo Apostólico e posteriormente desenvolvidas na produção literária dos reformadores e nas grandes confissões reformadas. Delas, quero destacar a doutrina das Escrituras. Penso que é aqui que reside a maior diferença entre a neo-ortodoxia e a antiga ortodoxia.
O liberalismo, na época do surgimento da neo-ortodoxia, havia reduzido a Bíblia a um livro de religião comum, cheio de erros e contradições de toda sorte, onde encontramos apenas o registro da fé dos israelitas e da fé da Igreja cristã primitiva. Os neo-ortodoxos se levantaram contra a aridez e o ceticismo do liberalismo porque, ao final, ele não nos deixava mais ouvir a voz de Deus através da Bíblia. Para a neo-ortodoxia em geral, o erro dos liberais não foi empregar a crítica bíblica para mostrar que a Escritura está cheia de erros e contradições, mas de pensar que isso era um empecilho para que Deus nos falasse hoje. O maior de todos os milagres é exatamente que Deus nos fala através das palavras imperfeitas, erradas, imprecisas e equivocadas desse livro. A neo-ortodoxia, portanto, desejava manter a relevância da Bíblia sem descartar as afirmações dos liberais, que o Pentateuco era uma edição mal-feita de fontes escritas no período do exílio, que o relato de Gênesis 1-3 era mítico, que os Evangelhos Sinóticos tinham erros, que não havia nada de histórico no Evangelho de João, que Paulo não escreveu a maioria das cartas com seu nome e assim por diante.
Aqui a neo-ortodoxia se afastou da ortodoxia, que apesar de analisar a Bíblia como literatura, não negava sua autenticidade, integridade, historicidade e a veracidade de seus relatos. Enquanto que para a ortodoxia a Bíblia é infalível, a neo-ortodoxia mantém a posição crítica do liberalismo, que a Bíblia está cheia de erros e contradições. A neo-ortodoxia vai mais além do liberalismo em dizer paradoxalmente que, apesar disso, Deus fala infalivelmente através desse livro às pessoas de hoje.
Na verdade, essa separação antecede a neo-ortodoxia, que a tomou emprestada de um dos apóstolos do liberalismo, J. Solomo Semler, (1725-1791): “A raiz de todos os males (na teologia) é usar os termos ‘Palavra de Deus’ e ‘Escritura’ como se fossem idênticos”. Para Barth, por exemplo, a Bíblia é uma testemunha da Palavra de Deus, Jesus Cristo, e não deve ser confundida com essa Palavra. Todos conhecem o slogan neo-ortodoxo, que a Bíblia não é a Palavra de Deus, mas que se torna a Palavra de Deus quando este, soberanamente, usa-a para nos falar. Sem esse momento milagroso, é um livro qualquer (embora, para sermos honestos, Barth ao final de sua vida, estava mais disposto a admitir que, mesmo na estante, a Bíblia era a Palavra de Deus). Como testemunha da revelação ou da Palavra, a Bíblia não é infalível e muito menos inerrante. Ela é o registro humano da reação de fé que as pessoas tiveram diante da revelação de Deus, Cristo. Os autores bíblicos não foram inspirados conforme diz a ortodoxia, ou seja, suas palavras não foram ditadas mecanicamente por Deus (alguns neo-ortodoxos gostam de caricaturizar a doutrina reformada da inspiração plenária e transformá-la na teoria do ditado). Para os neo-ortodoxos, a inspiração reside naquele encontro contemporâneo entre o leitor e Cristo, a verdadeira Palavra de Deus, nas páginas da Bíblia. Portanto, a Bíblia não é inspirada, mas é instrumento para que essa inspiração aconteça.
É claro que esse conceito, advindo do liberalismo do qual Barth nunca se livrou totalmente, não pode ser considerado como ortodoxo. Na ortodoxia, a Bíblia é a Palavra de Deus, dada por inspiração divina, que consistiu na atuação soberana do Espírito de Deus em seus autores humanos, usando o seu conhecimento, a formação, o estilo, e de tal maneira orientando-os que o resultado final, em qualquer momento, pode com justiça ser chamado de a Palavra infalível e plenamente confiável de Deus.
A maneira que a neo-ortodoxia seguiu para resgatar a fé cristã dos resultados destrutivos da crítica bíblica do liberalismo não foi enfrentá-los e mostrar as suas incoerências, e nem mesmo que eram viciados pelos pressupostos racionalistas. Os neo-ortodoxos aceitaram pacificamente que a Bíblia não nos dá relatos verdadeiramente históricos, fatos ocorridos na história linear. Contudo, afirmaram que aquilo não tinha qualquer relevância para a fé cristã. A fé não depende da história. O Cristianismo permanece relevante independentemente da historicidade ou não da criação, da queda e da ressurreição. Como ilustração, menciono o comentário de Karl Barth em Romanos 1.4, “e foi designado Filho de Deus com poder, segundo o espírito de santidade pela ressurreição dos mortos, a saber, Jesus Cristo, nosso Senhor”, Barth diz:
Esta designação de Jesus [como Filho de Deus pela ressurreição dos mortos] é o seu verdadeiro significado e como tal não pode ser verificado historicamente. Jesus, como o Cristo, o Messias, é o final dos tempos. Ele só pode ser entendido como paradoxo, como vencedor, como pré-história... Do ponto de vista histórico, Cristo só pode ser entendido como problema, mito; ele traz o universo do Pai, do qual nada conhecemos, nem podemos vir a conhecer, através da história.
Aqui Barth declara que a história não pode transmitir o mundo de Deus. Num futuro post de
Dessa forma, neo-ortodoxos falam da criação, da queda, da ressurreição, mas o que eles querem dizer com isso é bastante diferente da ortodoxia. Os neo-ortodoxos atacaram duramente a busca liberal pelo Jesus histórico, não porque acreditassem que esse Jesus já estava retratado nas páginas dos Evangelhos, mas porque essa busca era irrelevante para a fé. Para eles, o que nos interessa não é o Jesus da história (qualquer que tenha sido), mas o Cristo da fé, que é o Cristo que encontramos nas páginas do Novo Testamento.
Não acho que perdi meu tempo ao criticar liberais em posts anteriores, mesmo que o liberalismo teológico clássico, como movimento, já passou na Europa e nos Estados Unidos. O velho liberalismo ressuscita na historie, transformado
24 comentários
comentáriosRev Nicodemus,
ResponderTenho que dizer que tem sido uma aula os posts do blog de vcs sobre liberalismo, neo-ortodoxia e afins. Aliás, ñ só nesses assuntos, mas em tudo. Tenho aprendido muito e creia-me, está sendo muito útil já que muitos não tinham acesso a esses conceitos, quem foi Barth, a diferença entre neo-ortodoxia e liberalismo(se é que ela existe, rsrs), etc...
Eu tinha um conhecimento de leve sobre isso. A verdade sobre esses caras (liberais e neo-ortodoxos) tb rev, é que eles TÊM que passar uma imagem de pessoas comprometidas com o "verdadeiro" evangelho, com a "verdadeira" Reforma Protestante e etc, mas na verdade, eles fazem o caminho de volta ao Romanismo ao depreciar as Escrituras. Muita gente que não conhece os erros desse grupo e os vê na igreja acha que eles pensam e crêem como nós, que são reformados qdo ñ é verdade.
Eu tenho sido muito edificada e instruída por essas aulas na internet. Deus abençõe muito vocês. Muito mesmo!
Oi, Juliana,
ResponderObrigado por seu comentário. Ficamos realmente satisfeitos em poder contribuir de alguma forma para uma melhor compreensão da fé reformada por parte dos evangélicos.
E vc tem razão. Neo-ortodoxia não é ortodoxia, apesar da linguagem similar. Também não é liberalismo, falando de forma estrita, mas conserva a visão crítica do liberalismo sobre as Escrituras e outros pontos.
Um abraço.
Então Augustus, evidentemente, não tenho a sua erudição ou a de seus companheiros, mas, arrisco dizer que Barth nunca teve a intenção de ser um teólogo neo-ortodoxo. Em minha opinião, seu trabalho foi contestar, de forma brilhante, a interpretação intransigentemente voltada para a inerrância ou infalibilidade, na maioria das vezes, ligadas ás traduções e os problemas da hermenêutica. Não sei se intencionalmente e sutilmente ou sem querer querendo, seu texto nomeia Barth como uma espécie de paladino da neo-ortoxia e declara a ortoxia (como você a vê) o lado certo, sendo o seu lado, claro. Considero isso uma incursão em terreno muito perigoso. Como dizia um de nossos professores: Sobre os radicais, apenas, Barth escreveu tanto que, se começassemos a ler agora (Há trinta anos atrás) não conseguiriamos ler tudo antes do fim de nossas vidas. O que eu espero, unido à milhares de seres humanos é a possibilidade de entender o amor de Deus de forma simples e prática. Chegar ao final da vida e poder afirmar, sem dúvida, sim eu vou morar com o Pai.
ResponderCaro Lou,
ResponderPara alguém que começou dizendo que "não tenho a sua erudição e nem a de seus companheiros" você se sente bastante seguro para fazer um monte de observações!
É claro que Barth nunca teve intenção de ser um teólogo neo-ortodoxo, porque a neo-ortodoxia não existia em sua época! Ela nasceu das idéias deles, de Brunner e Niebhur, entre outros.
Mas se você quis dizer que Barth nunca teve intenção de se afastar da ortodoxia da Igreja, eu concordo. Contudo, isso não anula o fato que o pensamento dele e de outros neo-ortodoxos sobre a Escritura, que é o ponto de meu posto, é diferente e distinto do pensamento da ortodoxia.
Ele de fato contestou, não somente o liberalismo como a doutrina da inspiração defendida pelos ortodoxos, que incluia a infalibilidade e a inerrância das Escrituras. E tentou fazer uma síntese, um meio-caminho, onde acabou mantendo a linguagem ortodoxa com conteúdo liberal, em certos aspectos da doutrina da Escritura.
É claro que eu considero a ortodoxia o lado certo! Não afirmo isso de forma sutil e nem sem querer querendo, afirmo abertamente. É só ler o que postamos aqui. Da mesma forma que todos, inclusive você, tenho minhas convicções e não me envergonho delas.
Sua declaração que considera uma incursão em terreno perigoso tomar um posicionamento, em si mesmo é um posicionamento, não é mesmo? Ninguém consegue ser coerentemente relativista!
Espero que você consiga o alvo de sua vida, que é entender o amor de Deus de forma simples e prática. E que no final de sua vida, você vá morar com o Pai.
Um abraço.
Brilhante sua réplica. Só uma correção, sua sutileza deu-se no sentido de nomear Barth como paladino da neo-ortodoxia (foi o que eu escrevi). Quanto à sua postura ortodoxa, realmente, você nunca deixou dúvidas.
ResponderOla Augustus...
ResponderNunca tive uma clara definição de quais eram as principais diferenças existentes entre a neo-ortodoxia e ortodoxia...e vejo que o existencialismo impera, tendo em vista um subjetivismo latente da fé.
Por sua vez, é possível compreender essa teologia Barthiana, pois inundado do liberalismo teológico, somente um salto no escuro para Barth trazer novamente a biblia como um livro de fé. E que salto contra o ceticismo.
Augustus no espírito do meu post anterior, sob seu ponto de vista, quais aspectos da doutrina Barthiana que são válidos? E o existencialismo (kieerkgard), é válida sua filosofia? Querendo ou não, sendo benéfica ou não, o existencialismo bombardeou o liberalismo, através de Barth?
Espero vê-lo na programação de Aniversário da IPO (IP de Osasco)
Abraços
Olá Pastor Nicodemus
ResponderDe fato é uso comum na mídia liberal o termo "Cristo Histórico" como se houvesse um indivíduo chamado cristo e em torno dele uma história que já seria outra coisa.
Ora todo Cristo é histórico, não é possível dividir a prória história no meio e dizer que de um lado existiu um sujeito chamado cristo e do outro lado uma história elaborada com o seu nome, pois se fosse assim o cristianismo não teria prosperado. É incrível observar que toda teoria liberal que contesta o cristianismo como fato histórico é objetivamente fundamentada num elemento de fé extremamente rebuscada, onde mais vale aquela máxima de Chesterton que cito de memória:
O homem quando não crê em Deus não é que ele não crê em nada, ele acredita em tudo.
Quando a coisa chega nesse ponto, me parece, o indivíduo começa e fugir da realidade e descanba para algum tipo de teologia abstrata e idealizada onde o terreno é movediço e fatalmente auto-destrutivo.
um Grande Abraço
Alex
Estimado Rev. Augustus,
ResponderComo sempre, seu artigo é ótimo. Permita-me propor somente três questões que me parecem ser relevantes na discussão sobre ortodoxia e neo-ortodoxia:
1) O senhor escreveu que a ortodoxia, apesar de analisar a Bíblia como literatura, não nega sua autenticidade, integridade, historicidade e a veracidade de seus relatos. O que dá sustentação a essa concepção ortodoxa? Em outras palavras, quais as razões pelas quais podemos afirmar que a ortodoxia é veraz quando defende a integridade, a historicidade e a veracidade da Bíblia como um todo? Ou ainda, o que torna esse pressuposto mais consistente e confiável do que os pressupostos da neo-ortodoxia?
2) O senhor disse também que a Bíblia "foi dada por inspiração divina, que consistiu na atuação soberana do Espírito de Deus em seus autores humanos, usando o seu conhecimento, a formação, o estilo, e de tal maneira orientando-os que o resultado final, em qualquer momento, pode com justiça ser chamado de a Palavra infalível e plenamente confiável de Deus". Considerando que o conhecimento dos autores bíblicos era limitado à época, tal conhecimento não poderia ter levado os autores a equívocos ou imprecisões no registro que fizeram, no que concerne a aspectos históricos e/ou científicos?
3) Por que, afinal, erros ou imprecisões históricas ou científicas comprometem necessariamente a veracidade da revelação cristã tal como nos é apresentada na Bíblia? Por que não podemos dissociar, na leitura da Bíblia, a verdade teológica da necessidade de absoluta veracidade histórica e/ou científica?
Um grande abraço,
Marcos M. Grillo
Lou,
ResponderDesculpe, você tem razão, eu entendi mal o que você escreveu. Acho que a confusão se deve ao seguinte: a neo-ortodoxia é mais ampla que o barthianismo, pois inclui as idéias de outros como Brunner. Eu não estava querendo associar a neo-ortodoxia somente a Barth, pois seria um erro. Contudo, que Barth é o teólogo cujas idéias melhor representam a neo-ortodoxia no geral, parece que é consenso.
Meu caro JP,
Respondo do meu ponto de vista. Há várias coisas da doutrina barthiana que são válidas, que são aquelas em que ele segue o Cristianismo histórico: trindade, divindade de Cristo, etc. Também válida é a abordagem crítica de Barth contra o liberalismo teológico e contra uma ortodoxia engessada e inoperante de sua época.
Sobre o existencialismo, a sua validade depende do referencial que tomarmos. E por fim, não sei responder quem bombardeou quem (liberalismo e existencialismo). Quem sabe ambos atiraram ao mesmo tempo...?
Alex,
Suas observações são pertinentes. A distinção liberal entre o Jesus da história e o Cristo da fé tem vários pontos em aberto até hoje.
Um abraço a todos e obrigado por seus comentários.
Marcos Grillo,
ResponderVocê disse que são apenas três perguntas, mas cada uma delas exige uma resposta bem extensa. Por exiguidade de espaço e por falta de tempo para me delongar muito, e correndo o risco de simplificar demais as respostas, aqui vai:
1. A confiança da ortodoxia quanto aos atributos da Escritura que mencionei decorre primariamente daquilo que Calvino chamou de testemunho interno do Espírito Santo. É Deus quem dá testemunho da verdade da Escritura. Esse ponto de Calvino é mais tarde reafirmado nas confissões reformadas, batistas e presbiterianas. Os demais motivos e razões podem ser encontrados nos compendios clássicos de teologia, na parte de bibliologia. Em português, leia Grudem, Berkhof, Schaff, Strong, etc.
Você está correto quando aborda o assunto falando de pressupostos. Pois a crítica bíblica não é neutra, ela parte de pressupostos também. A ortodoxia parte do pressuposto que a Bíblia é a Palavra de Deus. A crítica bíblica, adotada pela neo-ortodoxia, parte do pressuposto de que não é. A consistência e a confiabilidade dos pressupostos vai ser uma questão dos pressupostos de quem analisa, não é mesmo?
2. O que eu falei sobre inspiração é mais ou menos a definição clássica do Cristianismo histórico. Sobre a questão de imprecisões e erros no registro bíblico, já que feito por humanos, dê uma olhadinha num post meu aqui no blog "Creio na inerrância da Bíblia" e depois outra vez veja a defesa clássica desse assunto nos compêndios de teologia ortodoxos.
3. Essa sua terceira questão é bem interessante. Talvez aquilo que você chama de imprecisões históricas ou científicas, como "o sol parou" ou "o sol percorre o céu de uma extremidade a outra" não seja nada mais que linguagem do observador. Falo disso no meu post sobre inerrância. Quanto a esse tipo de "imprecisão", não tenho problema.
Mas, o pensamento crítico vai bem mais longe que isso. As imprecisões da Bíblia chegam, dizem eles, a narrativas de histórias e eventos, com personagens que nunca existiram, como se fossem verdadeiros quando na verdade são apenas a interpretação de fé dos seus autores. É aí que começa a complicar, pois tanto o judaísmo (no VT) quanto o cristianismo (VT e NT), ao contrário de muitas outras religiões, se baseiam em fatos históricos (a criação, a queda, o êxodo, a morte e ressurreição de Cristo, etc.)
Por exemplo, segundo Bultmann, Cristo nunca ressuscitou literalmente dos mortos. Por viverem numa época mítica e pré-científica, os discípulos acabaram falando da sua ressurreição em termos reais e concretos, quando na verdade, influenciados pela cultura e pela visão da época, eles estavam materializando aquilo que só havia ocorrido na pregação deles. Cristo ressuscita no kerygma, onde sua morte é resgastada da inutilidade e dada um novo sentido, que é a justificação pela fé (Paulo seria o principal responsável). Da mesma forma, a negação da Queda, da existência de Abraão, dos milagres, etc.
Veja como fica impossível dissociar teologia da história. A neo-ortodoxia acredita que isso é possível. Os ortodoxos, como eu, não.
Grande abraço!
Estimado Rev. Augustus,
ResponderMais uma vez, obrigado pela atenção. Sem querer me estender, permita-me comentar brevemente suas respostas.
1. O pressuposto da crítica bíblica, tal como adotada pela neo-ortodoxia, estaria baseado no bom senso (ou no senso comum) e nas ciências naturais (física, biologia etc.) e sociais (história, antropologia etc.). Já o pressuposto da ortodoxia, segundo o qual a Bíblia é a Palavra de Deus, estaria fundamentado no que Calvino chamou de "testemunho interno do Espírito Santo", o que, convenhamos, é um conceito bastante vago (pelo menos à primeira vista). É difícil não considerar o pressuposto da ortodoxia como um caso de petição de princípio. Mas vou procurar fazer uma pesquisa sobre bibliologia nos autores citados. Aliás, como pesquisar em todas as teologias que o senhor citou (Grudem, Berkhof, Schaff, Strong) seria complicado (além de caro!), o senhor poderia me indicar, dentre elas, a mais importante?
2. Não consegui encontrar seu texto "Creio na inerrância da Bíblia". O senhor poderia me passar o link?
3. Podemos crer na ressurreição de Cristo e nos Seus milagres com base no testemunho dos apóstolos, de Paulo e da Igreja primitiva. Mas, da criação e da queda, por exemplo, quem nos deixou testemunho? Ademais, quantos cristãos piedosos, ao longo da história, não creram que o mundo se restringia ao Oriente Médio e talvez à Europa, e que a Terra era quadrada, e que o Sol girava ao redor dela, e que todas as doenças eram causadas por espíritos malignos, etc.?
A bem da verdade, na terceira questão que propus, não me expressei bem. Ficou parecendo que considero irrelevante a questão da historicidade do cristianismo, como se não fosse importante verificar a veracidade histórica da fé cristã. Na realidade, o que eu quis questionar foi a idéia de que se, por exemplo, o relato do Gênesis (da criação e da queda) não for considerado historicamente verídico (como defende a ortodoxia), isso comprometeria toda a revelação. Como eu disse, podemos confiar no testemunho histórico dos Apóstolos e da Igreja primitiva com relação aos milagres e à ressurreição do Senhor, como também podemos ter confiança nos profetas, cujas profecias se cumpriram na pessoa de Jesus Cristo. Porém, nem todos os demais relatos bíblicos dispõem de semelhante grau de historicidade. Nesse caso, e considerando que o cristianismo é indissociável da história, será que não podemos basear a nossa fé naquilo que é historicamente comprovável, ou pelo menos verossímil do ponto de vista histórico?
Um forte abraço!
Marcos M. Grillo
Marcos Grillo,
ResponderVocê tem direito a uma réplica, mas só isso. Aqui vai minha resposta a sua réplica. Se quiser continuar, vamos fazê-lo em pvt.
1. O bom-senso ou senso-comum depende de pressupostos. O que parece bom-senso para um liberal não parece para um ortodoxo. "O homem natural não pode receber as coisas do Espírito de Deus porque lhe parecem loucura".
Além do mais, lembre que o conceito de "senso comum" surgiu na Escócia exatamente para apoiar a ortodoxia, como se vê na Velha Escola de Princeton.
2. As ciências naturais e especialmente as sociais, além de não serem uniformes e não terem uma mesma abordagem a praticamente nenhum assunto, também operam a partir de pressupostos, inclusive religiosos. No caso das últimas, estão eivadas de pressupostos marxistas e decididamente anti-cristãos. As ciências naturais um dia já foram todas favoráveis aos conceitos bíblicos de criação, etc. Sugiro a leitura de "A Alma da Ciência" de Nancy Pearcey.
3. Se o pressuposto da ortodoxia é petição de princípio, o mesmo é verdade quanto aos da neo-ortodoxia, conforme menciono acima. E mais uma vez, prefiro ficar do lado da fé. Para ler a Bíblia, é preciso ter pressupostos bíblicos e não pretensamente racionais e científicos. Veja o que disse o próprio Barth: “Minha experiência pessoal com filósofos é que eles me notaram e, um pouco forçados, me respeitaram na medida em que eu pude dar-lhes uma demonstração prática de que, como teólogo, não me sinto na obrigação de dar satisfação a nenhum deles” (De uma carta a H. Kraemer de 29 de novembro de 1952
4. Não se trata da autoridade de Calvino, mas da própria Bíblia. Textos como o Salmo 119, 2Tm 3.16, e outros, indicam que os autores bíblicos consideravam a Escritura como Palavra de Deus. "A Escritura não pode errar", disse Jesus.
Esses questionamentos que você está fazendo acerca da inspiração e inerrância da Escritura receberam atenção e resposta de muitos estudiosos de peso, desde que o liberalismo teológico começou no século XVII a questionar esses atributos da Escritura. Não vale a pena ficar revisando todos os argumentos aqui. Ofereço em seguida uma sugestão desses livros que você poderia ler e ver como os ortodoxos têm defendido a doutrina da inspiração e inerrância das Escrituras:
Inspiração e Inerrância das Escrituras, de Hermisten Maia, pela Editora Cultura Cristã.
Inspiração e Canonicidade da Escritura de Laird Harris, pela Cultura Cristã.
Teologia sistemática, de Wayne Grudem pela Vida Nova, leia a parte sobre as Escrituras.
As Institutas de João Calvino, leia o volume I, capítulo 7, onde Calvino explica o testemunho interno do Espírito.
Meu post sobre inerrância está em http://tempora-mores.blogspot.com/2006/02/sobre-inerrncia-da-bblia.html
Por último, se você consegue crer nos milagres e na ressurreição física de Cristo com base no testemunho dos apóstolos, com certeza não é um neo-ortodoxo e muito menos um liberal. Se você, portanto, crê na intervenção miraculosa de Deus na história, ressuscitando um morto -- qual é o problema em crer que Ele sobrenaturalmente preservou o relato da criação e da queda desde Adão até Moisés, de forma oral ou escrita? Adão foi testemunha, e ai começa a corrente. Jesus, Paulo, e os demais apóstolos que você considera corretos no registro da ressurreição se referem à criação e à queda como fatos históricos. Acho que você é mais fundamentalista do que pensa!
Sobre as crenças equivocadas dos cristãos piedosos, fato que ninguém discute, não é esse nosso ponto. Eles não foram inspirados por Deus nem escreveram Bíblia e nem as crenças deles são base para a nossa.
Sobre seu último ponto, acho que já tratei disso com você, ou seja as implicações da não historicidade da criação e da queda para o restante da teologia cristã. E se não me engano, você sugeriu a explicação barthiana para a queda, que naturalmente discordo frontalmente.
Bom, já ficou grande demais e você me alugou por muito tempo. Vamos dar chance aos outros. Um abraço.
Rev. Augustus,
ResponderUma pergunta um tanto complexa para responder: podemos considerar Barth nosso irmão em Cristo?
Bem, sobre o citado Bultmann, gostaria de compartilhar um ocorrido em que o próprio Dr. Russell Shedd esteve presente diante do teólogo alemão.
Cabe destacar que o Dr. Shedd mesmo relatou o acontecido a mim e a mais algumas pessoas. Ele foi testemunha ocular "do fato histórico" - e não de "um Bultmann da fé" propagado por um boato.
Eis aqui o relato, de memória, do que ouvi do Dr. Shedd a respeito de Bultmann:
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Pergunta: - O sr. crê na ressurreição de Cristo?
Bultmann: - Sim, creio.
Pergunta: - Mas o sr. crê mesmo na ressurreição corporal do Jesus dentre os mortos, como fato histórico?
Bultmann: - Não, desta forma não. Creio que Ele ressuscitou no coração dos discípulos.
Pergunta: - O sr. crê no credo apostólico?
Bultmann: - Do credo apostólico creio apenas na afirmação "sofreu sob Poncio Pilatos".
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O problema que vejo em Bultmann e de outros que seguem escolas teológicas similares a dele é da apropriação do vocabulário consagrado pela ortodoxia para sustentar novas definições. Pelo exemplo acima, ou é uma santa ingenuídade ou falta de honestidade teólogica. No último caso, é um exemplo de "semiótica discursiva".
Estimado Rev. Augustus,
ResponderMuitíssimo obrigado pela atenção, e especialmente pelas sugestões bibliográficas. Procurarei comprar e ler todos os livros indicados.
E devo confessar que fiquei feliz por ser considerado pelo senhor mais fundamentalista do que eu pensava!
Um abração!
Marcos M. Grillo
Prezado Grillo,
ResponderCompletando a bibliografia anterior, envio mais sugestões dadas em pvt pelo prof. João Alves, mestre em Antigo e Novo Testamento do CPAJ:
Introdução Bíblica, de Norman Geisler e Willian Nix, Editora Vida (pp. 5-71)
A Origem da Bíblia, de vários autores, editado por Philip W. Comfort, CPAD (pp. 13-75 - artigos de F.F. Bruce, Carl Henry, J.I. Packer e Harold Brown).
Manual de Teologia Sistemática, Wayne Gruden, Vida, pp. 33-65. (Versão condensada do Teologia Sistemática).
O Conhecimento das Escrituras, R.C. Sproul, Cultura Cristã.
Sola Scriptura, vários (Joel Beeke, John Armstrong, John MacArthur, Jr., Michael Horton, R.C. Sproul, Sinclair Fergurson e outros), Cultura Cristã.
É claro que não precisa ler todos, é só para ter os títulos em caso de um dia precisar.
Um abraço!
Rev. Augustus
ResponderRealmente não há nenhuma possibilidade de Barth ser colocado na categoria de "ortodoxo". Entretanto, ele não se enquadra também na galeria dos "liberais". Então, alguém cunhou o termo "Neo-Ortodoxo". Agora, o que eu acho chocante é que essa última categoria é "glamourizada" por muita gente, atualmente, no meio evangélico reformado. Parece que é charmoso se identificar com os ensinos de Barth. Diante disso, o seu post é altamente interessante e útil. Parabéns!
"A Voz é de Jacó, porém as mãos são de Esaú"
ResponderEssa mesma frase serve para os "Puritanos" que se acham calvinistas mas mudaram completamente os ensinamentos do reformador, apesar de manter vocabulário parecido. Malditos Puritanos e neo-puritanos, esses lobos em pele de ovelha!
Meu caro anônimo,
ResponderNão costumo publicar comentários de gente que se esconde atrás da anonimidade da Internet. Mas no seu caso, resolvi publicar para que nossos leitores vejam o nível moral, acadêmico e espiritual de vários que discordam do que postamos aqui. Recebemos com certa freqüência comentários anônimos contendo palavrões, xingamentos, ameaças, de gente como você, que não tendo como argumentar, apela para aquela que é a arma dos vencidos, a ignorância e a violência.
Você amaldiçoa os puritanos, os neo-puritanos, de forma genérica e impiedosa, sem qualquer temor a Deus, esquecido do que o Senhor Jesus disse, que de toda palavra frívola que os homens proferirem, darão conta dela no dia do juízo. Não dava para argumentar com educação, e tentar provar que os puritanos distorceram, esvaziaram de sentido, alteraram o conteúdo do Calvinismo?
Mas você não fará isso, primeiro porque provavelmente lhe falta o conhecimento histórico e teológico, e segundo, porque só sabe enfrentar o contraditório com a boca cheia de maldições. Assim como outros que nos visitam aqui.
Note que apesar de criticarmos os escritos e obras dos neo-ortodoxos, jamais os amaldiçoamos, condenamos ou emitimos juízo de valor sobre suas pessoas. Na verdade, no meu primeiro post, teci inúmeros elogios a Karl Barth, enaltecendo as suas intenções.
Saber que muitos dos nossos adversários são como você, só nos deixa mais tranqüilos de que estamos no caminho certo.
Adeus.
Que feio, Anônimo... Não sabe que amaldiçoar é pecado? Tsc-tsc-tsc.
ResponderAlém disso, por que você não se ocupa das coisas de que gosta, em vez de ficar espezinhando os outros? Quem fica mais interessado naquilo que não lhe agrada demonstra ou masoquismo, ou pobreza de espírito. Ou então, escreva uma artigo bem contundente contra esses que você chama de (?) "puritanos e neo-puritanos" e publique em algum lugar. Não é melhor? Agora, xingar os outros em comentário de blog usando o anonimato... pense bem se isso é atitude.
FICO FELIZ DE DEFENDER O MÉTODO ORTODOXO DE INTERPRETAÇÃO.
ResponderDEVEMOS ENTENDER QUE NÃO É PORQUE OUTROS ERRARAM ANTES DE NÓS NA PATRÍSTICA QUE DEVAMOS ABANDONAR O MÉTODO DOS PAIS DA IGREJA.
DEVEMOS NOS VALER DO MÉTODO HISTÓRICO CRÍTICO COMO MAIS UMA FERRAMENTA DE INTERPRETAÇÃO BÍBLICA, SEM CONTUDO ASSEVERAR QUE SÓ ESTE MÉTODO É VÁLIDO.
ALGUNS CONCEITOS DO MÉTODO HISTÓRICO CRÍTICO SÃO ÚTEIS PARA NÓS.
A VIRTUDE ESTÁ NO MEIO, NESTE CASO.
MAS A ESPIRITUALIDADE É A BASE PARA INTERPRETAR AS ESCRITURAS.
Olá...
ResponderBom acabo de conhecer o blog e li apenas esse post, portanto não posso fazer nenhuma colocação contrária (e nem pretendia)...
Sou seminarista e tenho achado muito boas as idéias de Barth, principalmente suas respostas ao liberalismo... porém é bom ter alguém que vai contra essas idéias, com certeza contribuirão para uma teologia mais sã tanto para mim quanto para meus amigos...
Parabéns pelo blog, e pela firmeza em seu posicionamento... não pretendo me tornar ortodoxo, mas o senhor é um dos que eu respeitaria...
provavelmente mais pra frente comentarei, por enquanto deixo minhas parabenizações...
abraços!!
Daniel,
ResponderObrigado pelo comentário, Sim, como eu disse no post, Barth tem o seu valor e sua importância, e como tal não deve ser esquecido.
Todavia é importante avaliar a contribuição dele como um todo e entender de forma mais abrangente o seu pensamento. E como tal, existem diferenças profundas para com a ortodoxia cristã.
Espero que nosso blog contribua para seu crescimento e reflexão teológicos. Grande abraço!
Rev Augustus, saudações... estive vendo sobre o Marcus Grillo em http://www.veritatis.com.br/article/4727/marcos-monteiro-grillo, se o Sr nao viu de uma olhada... Lamento as posições xiitas que se tomam hoje em dia numa guerra de qui pro quos entre catolicos e evangelicos... mas gostei muito deste blog, da lucidez e do bom senso de suas respostas! Contribui de modo serio com o conhecimento Teologico Crsitão!
Responder