Não gosto muito de começar minha participação nesse blog falando desse assunto. Mas, por falta até de maior inspiração, lá vai. "Doutor" significa professor em latim. Por séculos, tem sido usado na Europa como um título acadêmico honrado, desde o surgimento das primeiras universidades. A mesma coisa ainda ocorre hoje, inclusive no Brasil. São doutores aqueles que obtiveram o título após anos de estudo intenso numa instituição reconhecida, inclusive com pesquisa. Há também os que portam o "doutorado em ministério". E há os doutores honoris causa, que às vezes são os que mais fazem questão de portar o título.
Após participar em muitas cerimônias, reuniões solenes e cultos aqui e pelo Brasil afora, acabei rascunhando num envelope, durante uma destas cerimônias, algumas reflexões sobre o uso do título "doutor" no cerimonial de tais eventos. É "doutor" prá lá, "doutor" pra cá... Além disto, sei que em vários quartéis da minha própria denominação, existe uma espécie de rejeição ou resistência aos pastores que são "doutores" da Igreja, como se o fato de um pastor ter este título, em si só, já seja um sinal de vaidade e presunção. Bom, aqui vão minhas reflexões.
Seguindo o costume americano, "doutor" é usado no Brasil para advogados, médicos, delegados, juizes, etc., mesmo que nunca fizeram uma pós-graduação lato sensu. Lembro-me de uma vez em que fui pregar em uma igreja em Terezina. Na hora da apresentação dos visitantes, o pastor apresentou o "doutor" fulano de tal, advogado famoso da cidade. E virou-se para mim, que havia acabado de ter o meu doutorado reconhecido pelo MEC, e me apresentou como o famigerado pastor Augustus (depois é que fui ver no dicionário que famigerado significa primariamente alguém bem afamado...).
Vejo com freqüência "doutor" ser usado para empresários, donos de fábricas, empresas, fazendeiros bem sucedidos, deputados, etc. Sei da história de um empresário, dono de uma fábrica, que usa inclusive o título em seu cartão de visitas e mal tem o segundo grau completo. Todos na empresa o chamam de doutor. Quando a secretária dele fala comigo, ou me escreve, se refere a ele como "Doutor" Fulano.
"Doutor" é também usado para aqueles que ocupam a posição de alta direção em instituições privadas. Em muitas delas, os membros da alta direção são chamados de "doutor", quando na verdade apenas um ou outro realmente têm doutorado. É interessante também que no cerimonial de instituições privadas evangélicas, os membros da alta direção são chamados de "doutores" nos eventos, enquanto que os pastores que também trabalham lá, e que são doutores de facto, são mencionados como "reverendos"...
Um lado curioso desta cultura arraigada é como as pessoas são tratadas quando se tornam diretores. Primeiro, passam a ser chamadas de "doutor", e aceitam com uma certa relutância. Passa o tempo e se acostumam. Quando saem do cargo, no dia seguinte passam a ser referidas como o "senhor" fulano de tal. É o caso mais rápido de perda de um título que eu conheço...
E por fim, "doutor" é o título honorífico dado pelos flanelinhas a todos os que estacionam o carro sob seus cuidados em qualquer rua da cidade, dado pelos garçons de restaurantes mais caros aos clientes que aparecem com paletó, e assim por diante.
Viva o Brasil, o país dos doutores!
Bom, é só uma reflexão boba que fiz... pensando bem, não faço questão alguma de ser chamado de doutor, embora não negue que me faça bem, pois sei o quanto lutei para obter este título. Também não deixo de chamar de "doutor" os que se enquadram nas situações acima. Mas ao final, prefiro ser chamado de pastor mesmo. É o que sou, no íntimo do meu coração.
quinta-feira, dezembro 15, 2005
O País dos Doutores
Postado por Augustus Nicodemus Lopes.
Sobre os autores:
Dr. Augustus Nicodemus (@augustuslopes) é atualmentepastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Goiânia, vice-presidente do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana doBrasil e presidente da Junta de Educação Teológica da IPB.
O Prof. Solano Portela prega e ensina na Igreja Presbiteriana de Santo Amaro, onde tem uma classe dominical, que aborda as doutrinas contidas na Confissão de Fé de Westminster.
O Dr. Mauro Meister (@mfmeister) iniciou a plantação daIgreja Presbiteriana da Barra Funda.
7 comentários
comentáriosHonrado em ser o primeiro a comentar, saliento (1) que os títulos em português obedecem hitoricamente a um decreto do Rei de Portugal que até hoje é coipiado pelos médicos, advogados e outros brasileiros que fazem questão de serem chamados doutor. (2) Virou pronome de tratamento, mas ainda vejo em 'reverendo' (diferente de reverente) uma alusão à necessidade de o bispo ser "respeitável" (também diferente de respeitador, porém mas condição básica para se atingir àquele estágio).
ResponderFolton, obrigado pela dica. Então, a culpa é do Rei! Mas acho que o povo gostou, pois o Reino terminou mas todo advogado, médico, delegado, etc. quer ser chamado de doutor. Vixe!
ResponderCaros revs. Fôlton e Augustus. Lembrei-me de uma professora de Literatura Brasileira que tive. Ela era Dra. e me contou que uma vez, numa viagem de avião, sentou-se ao lado de um homem. Ela percebeu que ele tratava com certa aspereza as aeromoças e que tinha um ar de superioridade. Então, ela resolveu puxar assunto e descobriu que o homem era um advogado de início de carreira (nada contra os advogados, claro). Sei que, na conversa, ela perguntou o nome dele - já lá pelo meio da conversa - e ele então a respondeu com o Doutor bem mais acentuado do que o próprio nome. Ela então o perguntou: "Qual foi o tema da tese que o sr. defendeu?". Ele disse a ela: "Tese? Sou advogado". Ela, então, aproveitando para tirar uma casquinha também, lhe disse: "Ahhh... então é por vontade do Rei, né? Bom, é que eu defendi a tese em Paris e achei que pudêssemos nos conhecer..." ... O cara ficou sem graça...
ResponderEssa coisa de doutorado é bom mesmo e quem gosta da área acadêmica dificilmente vai passar sem ela. O problema é que, como o sr. falou, rev. Augustus, muitos dão ao título um valor em si mesmo, como se fosse a coisa mais importante da vida. Outros, por inveja, talvez, desprezam aqueles que têm o título. Estou me referindo ao círculo de nossa denominação. Que pena que pensam assim! Deus nos chamou para vocações diferentes em áreas diferentes, não deveríamos respeitar as opções?
Um grande abraço!
Wendell.
Professor Augustus Nicodemus,
ResponderEsta informação é quase “une perle de grand prix”, ou como os romenos dizem “uma rica margarida”: chamarem um clérigo presbiteriano de “famigerado pastor”. Acredite, eu ri que doeu! Homem, o Aurélio não sabe tudo. Mas até ele sabe que famigerado também pode significar “faminto”, “esfomeado”. Lembra do famigerado homem das neves? Alguém pensava em sua fama quando disse isso? Penso que não. Talvez nos aborígines que ele almoçava a cada inverno. Famigerado em Teresina, sei não. A platéia era formada por “doutores”? Guimarães Rosa conta a história de um homem, um médico, que chamou um perigoso jagunço de famigerado e teve problema para explicar o sentido original, inicial da palavra. O jagunço disse: "— Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?" Outro lá quase brigou com o cobrador do ônibus só porque ele o chamou de (veja o senhor) "recalcitrante"!
Numa crônica de 1960 Rubem Braga escreveu: "Sabem qual o superlativo de pulcro? Isto eu sei por acaso: pulquérrimo! Mas não é desanimador saber uma coisa dessas? Que me aconteceria se eu dissesse a uma bela dama: a senhora é pulquérrima? Eu poderia me queixar se o seu marido me descesse a mão?"
Quanto ao senhor, quantos quilos pesa mesmo? Ai, estes meus dedos impolutos e velozes, sempre escrevendo estultices como um famigerado recalcitrante!
Marcelo Hagah
João Pessoa-PB
Marcelo,
ResponderPois é, o episódio do "famigerado" até hoje é recordado naquela região por alguns que tomaram conhecimento.
A história de Guimarães Rosa é muito engraçada.
Sobre quanto peso, respondo que peso mais do que a estética requer, mas o suficiente para andar de boa saúde.
Abraços.
Pastor Augustus,
ResponderA pergunta sobre o peso era apenas um "chiste". Talvez o indigitado pastor piauiense estivesse pensando: "Pelo tamanho, irmã minha esposa, este pastor deve ser um abençoado de um famigerado! Por isso, faça aqui uma moqueca de peixe de água doce para ele não se aperrear." "Ô, irmão meu marido, por que V. não deixa de 'famigerância' e não o leva lá no Panela de Barro, para ele comer a balde?"
Marcelo Hagah
João Pessoa-PB
Depois que tomei conhecimento do livro "o que estão fazendo com a igreja", resolvi ler o blog inteiro, pois não tenho grana prá adquirir a preciosidade que é esse livro. Aí de vez em quando, entre um tapa em um liberal e uma bofetada num neopentecostal, me deparo com essas bem humoradas postagens e seus comentarios de me fazer rir. Essa postagem é muito legal e o comentario de Marcelo H. sem palavras.
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