quinta-feira, julho 30, 2009

Augustus Nicodemus Lopes

Davi dançou, eu também quero dançar!

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Este é um dos argumentos que mais escuto da parte daqueles que defendem a "dança litúrgica" durante os cultos públicos nas igrejas evangélicas. Se o rei Davi dançou diante da arca de Deus, quando a mesma estava sendo trazida de volta para Jerusalém, por que nós não podemos, da mesma forma, expressar nossa alegria diante de Deus em nossos cultos, com danças de caráter religioso? Afinal, a Bíblia menciona não só Davi, mas Miriã e outras pessoas que dançaram de alegria na presença do Senhor (a imagem ao lado de Davi dançando é do famoso pintor francês James Tissot).

Não consigo me convencer com este argumento. Eu sei que existem outros, mas este, em particular, não me convence. Não é que eu seja contra a dança em si. Sinceramente, não vejo como considerar a dança como um ato pecaminoso, como parece que alguns segmentos evangélicos fazem. Se Davi dançou, e com ele outros personagens da Bíblia, isto pode não provar que devemos dançar em nossos cultos, mas no mínimo é uma evidência de que a dança em si não é pecaminosa, errada ou imprópria para o cristão. A não ser, é claro, aquelas danças sensuais, provocativas, eróticas ou, no mínimo, sugestivas, que despertem paixões e a lascívia. Nesse caso, me junto aos Pais da Igreja, como Basílio, João Crisóstomo, Agostinho, Tertuliano, entre outros, que condenaram veementemente este tipo de dança por parte parte dos cristãos.

Mas, nem toda dança é sensual. Quando eu estava estudando para meu doutorado nos Estados Unidos frequentava com minha família uma igreja presbiteriana muito firme biblicamente. Uma vez por mês os casais da igreja se encontravam no salão social num sábado a noite onde, liderados pelo pastor e sua esposa, ouviam música country, jazz, clássica, e eventualmente dançavam (cada um com seu cônjuge, veja bem!). Minha esposa Minka e eu estivemos lá umas poucas vezes. Nós mesmos não chegamos a dançar, sou meio duro nas articulações e daria um espetáculo horroroso, matando a Minka de vergonha... hehehehe. Mas foi uma experiência muito interessante, que me marcou pela alegria, naturalidade e pureza do evento. E serviu para demonstrar o que eu já pensava, que dançar em si não é pecado.

Voltemos a Davi. Por que então não consigo aceitar que o exemplo dele é definitivo como base para as danças litúrgicas, ministérios de coreografia, dança profética e grupos de danças durante os cultos?

Bem, primeiro porque não acredito que devamos fazer normas ou estabelecer princípios gerais para a vida da igreja simplesmente a partir de atos, ações, eventos, incidentes envolvendo os heróis da Bíblia. Nem tudo o que aconteceu na vida deles pode virar paradigma para os cristãos. A não ser aquelas coisas que a própria Bíblia determina. Jesus, por exemplo, recomendou que imitássemos Davi em sua atitude para com a lei cerimonial (Mat 12:3). Davi é citado como homem segundo o coração de Deus (Atos 13:22), que serviu a Deus em sua própria geração (Atos 13:36), no que deveria ser imitado. Sua fé o coloca na galeria dos heróis da fé em Hebreus (11:32) e serve de exemplo para nós. Ainda poderíamos mencionar seu arrependimento e contrição após ter pecado contra Deus (Salmos 32 e 51). Tais coisas são norma e regra geral para todos os cristãos. Isto não significa, todavia, que cada atitude de Davi sirva de modelo para nós.

Uma segunda dificuldade que tenho é com este tipo de interpretação, muito popular hoje entre os evangélicos, que simplesmente transpõe para nossos dias os eventos históricos narrados na Bíblia, sem levar em consideração o contexto cultural, histórico, teológico e literário dos mesmos, e os usa como base para construir ritos, práticas e regras a serem seguidos nas igrejas cristãs. Moisés bateu com a vara na rocha - lá vem a reencenação do episódio nas igrejas como símbolo da vitória. Ouvi falar que a derrubada da muralha de Jericó foi recentemente reencenada numa igreja (usando uma muralha de isopor e gelo seco) como base para se clamar a vitória para o ano de 2009. E por ai vai. A lista é enorme. No caso de Davi, não poderíamos esquecer que na cultura do Antigo Oriente as danças eram usadas como manifestação popular pelas vitórias militares obtidas, e eram geralmente lideradas pelas mulheres. Foi o caso com a dança de Miriã (Ex 15:20), a filha de Jefté (Juízes 11:34), as mulheres de Judá (1Sam 18:6) e a própria dança de Davi (2Sam 6:20). Ao que parece, o povo saia em passeata dançando em roda (sobre dança de roda, veja Juízes 21:21 e 23). Até onde sei, no Brasil não se costuma celebrar as vitórias com danças de roda. As danças têm outra conotação e servem a outros propósitos, nem sempre moralmente neutros.

Tudo bem, vá lá. Vamos supor, por um momento, que a dança de Davi sirva de base para nós, cristãos. O que o evento lúdico do rei de Israel poderia nos autorizar? Com certeza, não autoriza que dancemos nos cultos públicos de nossas igrejas, pois a dança de Davi foi numa passeata religiosa, nas ruas de Jerusalém, algo espontâneo e do momento. Ele não marcou um culto no templo de Jerusalém, que era o local determinado por Deus para os cultos a Ele, onde foi dançar de alegria perante o Senhor. Até onde eu sei, nos cultos determinados por Deus no Antigo Testamento não havia dança alguma. Deus não determinou a dança como elemento de culto, não há qualquer registro de que as mesmas fizessem parte do culto que lhe era oferecido no templo. E acho que os apóstolos e primeiros cristãos entenderam desta forma, pois não há danças nos cultos do Novo Testamento.

Se formos usar o exemplo de Davi como base, chegaremos à conclusão que a dança dele também não autoriza a criação de grupos de dança litúrgica nas igrejas, que se apresentam regularmente nos cultos. Não justifica nem a criação dos ministérios de dança e a descoberta do dom espiritual da dança litúrgica e profética. A dança de Davi foi um evento isolado e individual. Não foi feita por um grupo que treinava e ensaiava para se apresentar regularmente nos cultos do templo. Aliás, não encontro no Antigo Testamento qualquer indicação de que havia em Jerusalém um grupo de levitas que se dedicavam ao ministério da dança litúrgica e que se apresentavam regularmente durante os cultos no templo de Deus. E deve ser por isto que também não encontramos estes grupos no Novo Testamento. Acho que o rei de Israel cairia de costas se ele visse tudo o que se inventou hoje no culto a Deus com base naquele dia em que ele saltou de alegria diante da arca do Senhor.

Por último, acho que este tipo de argumento, "Davi dançou, eu também quero dançar", deixa de lado alguns princípios importantes sobre o culto que devemos prestar a Deus. Primeiro, que embora toda nossa vida seja um culto a Deus (veja 1Cor 10:31), Ele mesmo determinou que seu povo se reunisse regularmente para cultuá-lo, cantar louvores a seu Nome, buscá-lo publicamente em oração e ouvir Sua Palavra. Uma coisa não exclui a outra, mas não devem ser confundidas. Nem tudo que cabe na minha vida diária como culto a Deus caberia no culto público e solene. Por exemplo, posso plantar bananeira para a glória de Deus, mas não vejo como justificar isto no culto público regular das igrejas. Cabia perfeitamente a Davi dançar de alegria naquele dia, na procissão de vitória, nas ruas de Jerusalém. Todavia, não o vemos fazendo isto no templo de Jerusalém, durante os cultos estabelecidos por Deus.

Segundo, não podemos inventar maneiras de cultuar a Deus além daquelas que Ele nos revelou em Sua Palavra. Os elementos que compõem o culto a Deus, até onde eu entendo a Bíblia, são a oração, o cantar louvores, a ação de graças, a leitura e pregação da Palavra, as contribuições voluntárias de seu povo, o batismo e a Ceia (quando houver). É claro que a Bíblia não estabelece ritmos musicais, não nos dá orações fixas e nem mesmo uma ordem litúrgica a ser seguida. Mas, ela nos dá os princípios e os elementos do culto que Deus aceita. A questão, portanto, não é se Davi e outros heróis da fé dançaram, mas sim se as danças litúrgicas fazem parte daquele culto que Deus determinou em Sua Palavra. E mesmo que eu não tenha nada contra o dançar em si, não vejo como as danças possam ser enquadradas como elementos de culto.

Enfim. Ao ler a história da dança de Davi o que aprendo é o amor que ele tinha ao Senhor, e a alegria que o dominava pelas coisas de Deus. Aprendo que devo amar ao Senhor e me alegrar com as coisas dele à semelhança de Davi. Todavia, não creio que a maneira com que Davi expressou estes sentimentos seja elemento de culto para os cristãos. O texto está muito longe de requerer isto. Sei que vou escandalizar muita gente ao dizer que eu não veria problemas com grupos de coreografia para evangelizar ou mesmo para participar em reuniões sociais dos jovens e adolescentes de nossas igrejas (sobre boate evangélica, falaremos em outra oportunidade). Mas o culto público a Deus, quer nos templos, quer em qualquer outro lugar, é regido pela regra: "só devemos adorar publicamente a Deus com aqueles elementos de culto que encontramos na Bíblia".

Termino lembrando que neste post estou interessado apenas no uso do episódio da dança de Davi como base para as danças litúrgicas. Há vários outros argumentos usados para defender esta prática, cada vez mais comuns nas igrejas evangélicas (como por exemplo o Salmo 150), que não receberam atenção aqui, mas que podem ser alvo de uma futura postagem sobre o assunto.

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segunda-feira, julho 20, 2009

Solano Portela

O que os Reformados Entendem por Livre Arbítrio?

          A questão e as controvérsias sobre a existência ou não do livre arbítrio são antigas. A discussão se faz presente, com freqüência, no meio presbiteriano, porque somos reformados. Esse termo, reformados, significa que entendemos que as doutrinas resgatadas pela reforma do século 16, e expressas nos documentos e escritos históricos dos reformadores e dos que seguiram em suas pisadas, expressam da melhor maneira os ensinamentos da Palavra de Deus.

          Ocorre que nem sempre os que defendem, ou os que negam o livre arbítrio, se preocupam em um entendimento maior do conceito, nem em uma abordagem mais ampla dos textos bíblicos pertinentes ao tema compreendido nessa “liberdade”. Nesse sentido, tanto a defesa, como o ataque, podem levar a uma distorção do ensinamento bíblico e por isso é importante examinarmos em maior detalhe o que realmente entendemos por livre arbítrio.
          Podemos fazer isso indo até o nosso símbolo de fé – a Confissão de Westminster (CFW: 1642-47), não porque tenhamos ali a palavra final, mas porque a Confissão nos direciona à Escritura, sistematizando, em proposições concisas, as doutrinas chaves da fé cristã. É nela que encontramos exatamente todo um trecho exatamente sobre o livre arbítrio. O capítulo 9 da CFW tem cinco seções. Nelas lemos que a Bíblia nos ensina que:
1. A natureza humana não possui determinação intrínseca (natural) para o bem ou para o mal. Essa é a liberdade da natureza humana, procedente da estrutura da criação, e a Bíblia, com freqüência e naturalidade, faz referência a essa situação, apelando ao “querer” das pessoas (“te propus a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas” – Dt 30.19; “... não quereis vir a mim para terdes vida” – Jo 5.40; “... Elias já veio, e não o reconheceram; antes, fizeram com ele tudo quanto quiseram” – Mt 17.12).
2. Entretanto, essa plena liberdade existiu no que a CFW chama de “estado de inocência”, ou seja, até a queda em pecado. No Cap. 4, seção 2, falando “da Criação”, a CFW indica que nossos primeiros pais foram “deixados à liberdade da sua própria vontade, que era mutável”. Voltando ao Cap. 9, quando o pecado entrou no mundo o homem perdeu essa “liberdade e poder” (“...Deus fez o homem reto, mas ele se meteu em muitas astúcias” – Ec 7.29).
3. O livre arbítrio, portanto, faz parte da natureza criada, mas não subsiste na natureza caída. Como pecadores, não podemos realizar qualquer “bem espiritual” que leve à salvação. Nesse sentido, toda a raça humana está morta “no pecado”. As pessoas são incapazes, cegas pelo pecado, de converter-se, ou mesmo “de preparar-se para isso”. Perdemos, portanto, o livre arbítrio, com a queda em pecado (“... o pendor da carne é inimizade contra Deus... os que estão na carne não podem agradar a Deus” – Ro 8.7-8; “... Não há justo, nem um sequer... não há quem busque a Deus; todos se extraviaram...” – Ro 3.10 a 12; “Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer” – Jo 6.44).
4. A situação atual da humanidade, sem livre arbítrio, é de escravidão ao pecado, mas a conversão, operada pelo toque regenerador do Espírito Santo é a libertação dessa escravidão. É a graça de Deus que habilita o homem a querer fazer o que é espiritualmente bom. Como permanecemos ainda pecadores e vivemos em um mundo que é pecado em pecado, não podemos realizar o bem perfeito, e eventualmente caímos também em pecado, mesmo depois de salvos ( “... todo o que comete pecado é escravo do pecado... Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” – Jo 8.34 e 36; “Ele nos libertou do império das trevas e nos transportou para o reino do Filho do seu amor” – Cl 1.13; “... uma vez libertados do pecado, fostes feitos servos da justiça” – Ro 6.18; “... nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro, e sim o que detesto” – Ro 7.15),.
5. Somente na eternidade, em nossa glorificação, é que a nossa vontade “se torna perfeita e imutavelmente livre para o bem só” ( “Ainda não se manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele” – 1 Jo 3.2).
          Esses pontos estabelecem o significado teológico da expressão livre arbítrio – a possibilidade de querer realizar o bem, que tem validade espiritual. Nesse sentido, as pessoas não o possuem em função do pecado e da natureza pecaminosa, que as conservam sob escravidão, fazendo-as escolher o pecado.
          A CFW ainda faz outras referências ao livre arbítrio, por exemplo, diz que Deus executa o seu plano “segundo o seu arbítrio” (Cap. 5, seção 3); diz ainda que a perseverança dos santos, ou seja a segurança dos crentes em um estado de salvação “não depende do livre arbítrio deles”, mas “do livre e imutável amor de Deus Pai” (Cap. 17, seção 2). Simultaneamente, uma liberdade de ação, e conseqüentes responsabilidades, é reconhecida, na CFW. No Cap. 20, seção 1, ela indica que os crentes procuram seguir os preceitos de Deus “... não movidos de um medo servil, mas de amor filial e espírito voluntário”. Por último, a CFW fala da liberdade de consciência (Cap. 20, seção 2), registrando que “só Deus é o senhor da consciência”; fala da “verdadeira liberdade de consciência”, e avisa contra “destruir a liberdade de consciência”, bem como contra nunca utilizar essa liberdade como pretexto para cometer “qualquer pecado” ou concupiscência, pois o propósito dela é servir “ao Senhor em santidade e justiça, diante dele todos os dias da nossa vida”.
          Devemos entender, assim, que quando indicamos que não possuímos livre arbítrio, não significa que somos robôs, agindo mecanicamente em um teatro da vida. Esse é o grande mistério: como Deus consegue nos dar essas faculdades decisórias, mas, ainda assim, cumprir o seu plano de forma imutável. Mais uma vez, é a CFW, que nos esclarece (Cap 3, seção 1 – “Dos eternos de Deus”), indicando que Deus “ordenou livre e inalteravelmente tudo quanto acontece”, porém “nem violentada é a vontade da criatura, nem é tirada a liberdade ou contingência das causas secundárias”.
          Como reformados, precisamos cuidar, portanto, ao contestarmos o livre arbítrio, de não suprimirmos esse aspecto – de que decidimos organicamente as questões da nossa vida, mas Deus, soberanamente cumpre seus propósitos. Se assim fizermos, reduzimos os atos de Deus a um modus operandi que não é o dele, nem é o ensinado na Bíblia. Talvez uma distinção que pode auxiliar a nossa compreensão e dar maior precisão ao tratamento desse conceito, é a utilização do termo livre agência. Livre arbítrio, no sentido já explicado, foi perdido. Esteve presente em Adão e Eva, mas não se encontra na humanidade caída. Livre agência seria a capacidade recebida de Deus de planejarmos os nossos passos (Ti 4.13), de decidirmos o nosso caminhar. Quando entendemos bem esse aspecto, nunca vamos achar que essas decisões são autônomas, ou “desligadas” do plano de Deus (Ti 4.14-15). É ele que opera em nós “tanto o querer como o realizar” (Fl 2.13) e o faz milagrosamente, imperceptivelmente, sem “violentar a vontade da criatura”. Longe de ser uma contradição, esse entendimento reformado, retrata Deus em toda sua majestade, ao lado de criaturas preciosas. Livres agentes, que perderam a possibilidade de escolha do bem (livre arbítrio), mas continuam formadas à imagem e semelhança da divindade, necessitadas da redenção realizada em Cristo Jesus e aplicada nas vidas dos que constituirão o Povo de Deus, pelo seu Espírito Santo.
Solano Portela
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terça-feira, julho 07, 2009

Solano Portela

Ainda a propósito dos 500 anos de Calvino

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O dia 10 de julho marca a data memorável dos 500 anos desde o nascimento de João Calvino. Contrário ao que muitos pensam, ele não criou ou formulou novas doutrinas, mas foi hábil sistematizador das verdades bíblicas, exemplo de devoção e exegeta preciso, deixando esse legado precioso, que já atravessa cinco séculos!

Calvino “está um nível acima de qualquer comparação, no que diz respeito à interpretação da Escritura. Os seus comentários precisam ser muito mais valorizados do que quaisquer dos escritos que recebemos dos pais da igreja”! Esse endosso entusiasmado de Calvino e de seus dons como comentarista e intérprete bíblico foi emitido por aquele que é considerado o seu grande inimigo: Jacobus Arminius! Charles Haddon Spurgeon, registra isso e classifica o comentarista Calvino como “príncipe entre os homens” e apresenta, ainda, a citação favorável de um Padre Católico Romano (Simon): “Calvino possui um gênio sublime”.

O que levaria Armínio, que divergiu com tanta intensidade da compreensão calvinista da soberania de Deus e da extensão da escravidão ao pecado na qual se encontra a humanidade; ou mesmo um católico romano, com sua discordância do modo de salvação defendido por Calvino, pronunciar tais elogios sobre João Calvino?

Certamente eles se rendem à precisão, devoção e seriedade com as quais João Calvino aborda a Palavra Sagrada, em seus escritos. Spurgeon destaca a sinceridade de Calvino e a tônica que o classifica como um exegeta, em paralelo a todas às suas demais qualificações. Ele disse, “a sua intenção honesta foi a de traduzir o texto original, do hebraico e do grego, com a maior precisão possível, partindo desse ponto para expor o significado contido nas palavras gregas e hebraicas: ele se empenhou, na realidade, em declarar não a sua própria mente acima das palavras do Espírito, mas a mente do Espírito abrigada naquelas palavras”. É por isso que Richard Baxter deu esse testemunho: “Não conheço outro homem, desde os dias dos apóstolos, que eu valorize e honre mais do que João Calvino. Eu me aproximo e tenho grande estima do seu juízo sobre todas as questões e sobre seus detalhes”.

É nessa linha e atribuindo esse valor, que devemos receber e apreciar os escritos de Calvino. Além do mais conhecido - As Institutas da Religião Cristã (tradução curiosa, que teria sido melhor vertida como: "Os Fundamentos da Religião Cristã"), temos a excelência dos seus comentários, como já apresentou o Dr. Mauro Meister, no seu post anterior.

Romanos foi o primeiro comentário escrito, em 1540, e, na seqüência, as demais cartas de Paulo. O comentário sobre a Segunda carta de Paulo aos Coríntios foi o terceiro livro escrito nessa série, concluído em agosto de 1546 (1 Coríntios foi concluído em janeiro de 1546; os comentários às demais epístolas de Paulo foram concluídos em 1548). Seu último comentário foi publicado em 1563. Todos esses livros foram originalmente escritos em latim. Para completar a totalidade da Bíblia, ficaram faltando: Juízes, Rute, 1 e 2 Samuel. 1 e 2 Reis, 1 e 2 Crônicas, Esdras, Nemias, Ester, Jó, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, 2 e 3 João e Apocalipse). Quando Calvino faleceu, ele estava escrevendo o comentário de Ezequiel.

Seguindo o seu costume, Calvino iniciou o Comentário da Segunda Carta aos Coríntios com uma dedicatória feita a Melchior Wolmar Rufus, um alemão muito famoso, professor de Direito Civil, alvo de sua profunda gratidão. Teodoro Beza (1519-1605) escreveu o seguinte sobre Melchior Wolmar, em sua “Vida de João Calvino”: “A sua erudição, piedade e outras virtudes; em conjunto com suas habilidades admiráveis como professor de jovens, não podem ser suficientemente destacadas. Em função de uma sugestão sua e por sua atuação, Calvino aprendeu a língua grega”. Assim, em meio aos seus estudos de advocacia, Calvino, aos 22 anos de idade, aprende a dominar uma das línguas originais da Bíblia, formando o alicerce de sua vida eclesiástica, como exegeta, hermeneuta e teólogo.

João Calvino é reconhecidamente um exegeta, um hermeneuta e um mestre em poimênica, mas ele é, antes de tudo, um Teólogo Sistemático. Certamente ele é mais famoso por seu tratado de teologia – As Institutas. Mas é nos comentários que ele escreveu ao longo de sua curta vida, que ele demonstra o apreço que tem para a fonte de sua sistematização teológica – a Bíblia. Os Comentários são importantíssimos, pois derrubam a pecha de que Calvino é um racionalista cujas ilações contrariam não somente o bom senso, mas o próprio ensino da Palavra de Deus. Não pode ser aceita, portanto, a visão propagada por oponentes de Calvino, de que ele deixa a visão orgânica do Reino para trás e embarca em um delírio racional, que o leva a conclusões sobre a soberania de Deus não encontradas nas Escrituras. Ora, é exatamente na Palavra de Deus, estudando texto a texto, onde Calvino encontrará a base para reafirmar e extrair todas as suas convicções e ensinamentos. Não deve nos surpreender que Calvino, o teólogo sistemático, começasse comentando Romanos (que ele considerava a chave para a interpretação correta das Escrituras) e as cartas de Paulo aos Coríntios. Estes livros são sistemáticos na apresentação de doutrinas fundamentais da Fé Cristã, interpretando e aplicando os ensinamentos dos Evangelhos; explicando os fundamentos veto-testamentários; firmando os passos da igreja de Cristo na Nova Aliança.

É interessante, também, que mesmo quando Calvino se envolve em um mergulho profundo nos livros da Bíblia, trecho por trecho, para desvendar o seu significado e na busca das lições supremas registradas por Deus, ele não perde a visão sistemática das doutrinas. Assim, em seus comentários ele não se contenta apenas em dar um resumo do livro que passará a examinar, mas também apresenta “o argumento” que norteou o autor na escrita do livro: o desenvolvimento sistemático do raciocínio do autor, e a lógica argumentativa dos pontos que necessitavam ser estabelecidos pela carta.

Na segunda carta de Paulo aos coríntios (possivelmente a terceira que escrevia aos Coríntios, pois 1 Co 5.9, faz referência a uma primeira – antes de 1 Coríntios, possivelmente não inspirada, no sentido canônico), temos a continuidade de instrução a uma igreja marcada por graves problemas de conduta, eivada de incompreensões doutrinárias, que havia motivado duras repreensões da parte do apóstolo. As notícias mais recentes, entretanto, são encorajadoras (7.5-7) e é nesse clima que Paulo, em meio às suas instruções práticas, abre o seu coração, defende a sua autoridade apostólica e prepara aqueles irmãos para uma futura visita.

Calvino penetra no espírito dessa carta à Igreja de Corinto. Explicando palavra a palavra, ou frase a frase, conforme a necessidade – recorrendo ao seu extenso conhecimento da língua grega e fazendo comparações elucidativas – ele vai nos auxiliando o entendimento. Através do comentarista, passamos a entender Paulo melhor, não somente os seus sentimentos, mas as doutrinas cabais que procura passar aos seus leitores, como a abnegação do “eu”, ensinada em 1.3-11. Em Calvino, neste Comentário, encontraremos exposições magistrais, como por exemplo o ensino da pureza da Igreja, registrado em 6.14-7.1, onde ele nos dá o contexto completo da situação de envolvimento com descrentes vivida por alguns daquela igreja. Nesse trecho ele mostra que Paulo trata de questões que transcendem a comum aplicação ao matrimônio (“jugo desigual”), referindo-se à perda de foco do Povo de Deus e à promiscuidade relacional deste, com o mundo.

Ao relembrarmos o nascimento desse gigante de Deus, com ação de graças pelo seu legado, devemos orar para que o Soberano Senhor, através da leitura dos textos de Calvino, produza fruto de santidade e luz em nossas vidas.

Solano Portela
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