Solano Portela[1]
A década de 1990 e a primeira
década deste novo século foram caracterizadas por mega tendências (megatrends[2]), ou
seja, grandes modificações no curso dos relacionamentos sociais e empresariais.
Entretanto, na década 2010-2020 vemos aflorar micro tendências que podem igualmente causar grandes impactos
futuros em diversas áreas da sociedade.
Mark J. Penn e Kinney Zolesne, em seu livro Microtrends, chamam a nossa atenção exatamente para esse viés das “pequenas forças por trás das grandes
mudanças de amanhã”.[3]
O livro traz um capítulo inteiro
dedicado ao segmento da educação, onde apresenta comentários e dados sobre uma
minúscula tendência, nos Estados Unidos, que vem crescendo exponencialmente e
já afeta significativamente o modus
operandi de instituições de ensino tradicionais e a visão do campo
educacional como um todo. Trata-se do Homeschooling,
ou a educação escolar ministrada nos lares, onde as crianças recebem no
aconchego de suas casas o preparo acadêmico, fora da estrutura formal
supervisionada pelo estado. A primeira vista pode-se pensar que essa tendência
teria apenas repercussão na educação básica (do maternal ao 3º ano do Ensino
Médio), no entanto, os reflexos no Ensino Superior já não podem mais ser
ignorados.
Como avaliar essa microtendência
e seus impactos no Brasil? Não chegaremos a uma avaliação precisa se acharmos
que o tema representa apenas uma peculiaridade ou idiossincrasia
norte-americana. É verdade que lá encontramos bolsões significativos de
ferrenha resistência às garras do estado voraz, e à sua avidez em não somente exigir
impostos sobre impostos, mas também por pontificar em todas as esferas da
atividade humana.[4]
No entanto, a prática do homeschooling
nos Estados Unidos vai muito além de ser mera característica exclusiva de
comunidades contestadoras.
Muitos escolhem essa modalidade simplesmente por
constatarem a falência do sistema público de educação; a deterioração da
disciplina e segurança para suas crianças, nas escolas; e o preço proibitivo
das melhores instituições de ensino particulares ou confessionais. Observem
também os seguintes dados,[5] que
evidenciam a importância dessa prática que começou timidamente na década de
1970, nos Estados Unidos, e que só passou a ser levada a sério a partir de
1999, quando o Ministério da Educação daquele país começou a levantar dados
sobre a crescente onda:
- Em 1999
já haviam 850 mil crianças sendo educadas nos lares. Em quatro anos esse
número havia crescido 30%, para 1,1 milhão.
- Isso
significa um acréscimo de 1,7% da população nessa idade escolar para 2,2%.
- Existem
hoje milhares de sites e eventos destinados a disseminar a prática. O
mercado de livros, currículos, vídeos e outros materiais relacionados com
o homeschooling, movimenta quase
um bilhão de dólares por ano.
- Apesar
das crianças educadas no lar representarem apenas pouco mais de 2% da
população escolar compatível, elas se destacam surpreendentemente em
competições educativas como, por exemplo, nos populares concursos de
soletração, onde constituem 12% dos finalistas. Nos testes de admissão ao
ensino superior (SAT), os alunos advindos de educação recebida no lar,
tiram notas 15% superior às dos demais.
- As
universidades têm se adaptado à tendência. Em 2000 apenas 52% possuíam
critérios formais de avaliação dos candidatos educados no lar. Atualmente,
83% já adotam critérios na expectativa de recebimento destes, e eles são bem-vindos
pela expectativa de um excelente desempenho acadêmico.
Da mesma forma, não podemos apenas adotar uma
visão simplista e dizer que no Brasil o homeschooling
é proibido e, portanto, não é assunto a ser discutido, pois não há perspectiva
de impacto em nosso sistema educacional. Nos Estados Unidos, mesmo tendo
começado na década de 1970, até 1981 ela era ilegal na maioria dos estados
norte-americanos; agora ela é legalizada em todos eles. Semelhantemente, no
Japão o homeschooling é proibido, mas
estima-se que 2 a 3 mil crianças estão sendo educadas dessa forma. Até na
China, onde subsiste a proibição formal, a existência da “Shanghai Home-School Association”, deixa vislumbrar que a pratica
existe, em extensão considerável. Atualmente, além de nos Estados Unidos, o homeschooling é legalizado na Austrália,
Nova Zelândia, Inglaterra e no Canadá.
Presentemente o Brasil já contabiliza
alguns poucos casos que têm resultado em processos e contestações judiciais. O
Dr. Carlos Roberto Jamil Cury, professor da PUC-MG, em seu ensaio, “Educação Escolar e Educação no Lar: espaços
de uma polêmica”[6]
apresenta alguns casos de homeschooling
no Brasil, que receberam sentenças adversas do nosso judiciário.[7] Dr. Cury
concorda com as sentenças e cita parecer do Conselho Nacional de Educação, que
expressa a visão prevalecente nos círculos governamentais, de que a única forma
de ensino é nas escolas:
Os filhos não são dos
pais, como pensam os Autores [do Mandado de Segurança]. São pessoas com
direitos e deveres, cujas personalidades se devem forjar desde a adolescência
em meio a iguais, no convívio formador da cidadania. Aos pais cabem, sim, as obrigações
de manter e educar os filhos consoante a Constituição e as Leis do país,
asseguradoras do direito do menor à escola...
Mesmo os cristãos que não são a favor do homeschooling, não podem aceitar essa visão estatal de que "os filhos não são dos pais"!
No lado do homeschooling, alguns casos têm recebido atenção da mídia, como por exemplo:[8]
- O caso
da família Bueno (9 filhos), de Jardim, MS. Durante 13 anos praticaram a
educação escolar no lar. Depois de denunciada à Promotoria Pública por
familiares, e de julgamentos adversos, mudou-se para o Paraguai.
- O caso
do casal Nunes (3 filhos), de Timóteo, MG. O casal tirou as crianças da
escola em 2006. Foram denunciados ao Conselho Tutelar e ao Ministério
Público. Para provar que os filhos não estavam “abandonados
intelectualmente”, como era alegado, eles foram inscritos no vestibular da
Faculdade de Direito de Ipatinga, MG. Passaram em posição excelente, no 7º
e 13º lugar, mesmo sem terem completado o ensino médio.
- O Caso
de Júlio Severo, figura controvertida por suas posições políticas e
religiosas, que defende homeschooling
desde 1991 e foi forçado a mudar-se do Brasil, supostamente por
contestações da justiça às suas convicções.[9]
- O caso
da conhecida família Schürmann (3 filhos), que, em 1984 empreendeu uma
viagem de 10 anos, navegando pelos mares do globo, aplicando o homeschooling em seus filhos,
durante todo esse tempo.
Em 1994 o deputado João Teixeira,
do PL, apresentou o projeto lei 4657/1994 procurando regulamentar a educação
escolar no lar. No entanto ele foi arquivado no ano seguinte. Em 2008, os
deputados federais Henrique Afonso, ex- PT, e Miguel Martini, do PHS,
apresentaram o projeto de lei 3518/2008, propondo, novamente, a regulamentação
do homeschooling no Brasil, do 1º ao
9º ano.
É possível, que mesmo com a visão monolítica de nossa legislação sobre a educação escolar no lar, talvez estejamos testemunhando mudanças e até a formação de jurisprudência que pode impactar o status quo da educacional tradicional.
Será que, com a globalização os casos de homeschooling não poderão se multiplicar
no Brasil? Existirão outras decisões judiciais, ou novas leis, que venham
legitimar e encorajar a prática? Em uma era de ênfase à Educação a Distância,
como barrar iniciativas de “estudo independente” que apresente melhores
desempenhos e avaliações do que a educação clássica tradicional?[10] Obviamente ninguém tem respostas precisas a essas
indagações, mas ignorar essa microtendência educacional não nos parece o
melhor caminho. Assim, nossas Instituições de Ensino Superior deveriam monitorar a tendência e iniciar
estudos sobre os impactos (sociais, financeiros, estruturais, acadêmicos e
organizacionais) resultantes de uma abertura do homeschooling no Brasil. Deveriam até considerar a possibilidade de
que esta modalidade venha a adentrar o Ensino Superior. Possivelmente essa é
uma rica linha de pesquisa que poderia estar presente em diversos programas de
pós graduação, de forma bastante interdisciplinar, com teses e estudos objetivos
e sem paixões ideológicas que substanciarão muitas decisões e definições.
É possível que pesquisas objetivas e sem radicalismos estatais, procurando aferir o lamentável estado do ensino básico,
principalmente em sua esfera pública, que leva os pais a procurarem
alternativas mais adequadas aos seus filhos, possam contribuir para o sistema
educacional como um todo, preparando-nos melhor para o futuro.
[1]
O autor ocupou a Diretoria de Planejamento e Finanças do Mackenzie (Universidade
e Colégios Presbiterianos) e é, atualmente, o Diretor Educacional da
Instituição, da qual, de 2005 a 2008, foi também Superintendente de Educação
Básica. É escritor, professor e conferencista.
[2]
Como exemplo citamos as mega tendências apresentadas nos livros de John
Naisbitt e Patrícia Aburdene: Megatrends
(1982) e Megatrends 2000 (1990),
todas elas confirmadas por uma aferição histórica do que motivou as grandes
mudanças sociais e empresariais dessas décadas.
[3] Subtítulo do livro Microtrends (NY: Twelve Hatchette Book
Group, 2007), 454 pp.
[4]
Nossa convicção, sem endossar extremismos norte-americanos, é a de que o estado (independente de sua
nacionalidade) realmente tem a tendência de extrapolar a sua esfera específica
de atuação, que é: garantir a segurança pública e assegurar, a todos os
cidadãos, oportunidades iguais de igualmente desenvolverem as suas
desigualdades.
[5]
Trazidos por Mark Penn, em seu livro.
[6]
Texto completo disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-73302006000300003&script=sci_arttext
, acessado em 24.05.2010.
[7]
Por exemplo, o Mandado de
segurança n. 7.407 – DF (2001/0022843-7), impetrado por família interessada
cuja segurança foi denegada pelo judiciário, confirmando parecer anterior do
Conselho Nacional de Educação.
[8] Um bom relato desses está disponível em: http://ozielfalves.blogspot.com/2008/10/escola-em-casa-crianas-longe-dos-bancos.html
, acessado em 24.05.2010
[9] Para mais informações sobre suas posições,
vide este blog, mantido pelo Severo: http://escolaemcasa.blogspot.com/,
acessado em 24.05.2010
[10]
Em 02.05.2015 foi postado artigo com o título: “O Homeschooling é liberado no Brasil”, em http://www.portaltl.com/?p=563 (acessado
em 05.02.2016), mas o título é um pouco exagerado e não existiam novidade em
trâmites jurídicos relacionados com a prática, até aquela data.
12 comentários
comentáriosOlá Presb. Solano.
ResponderÓtima reflexão! Como disse, espero ansiosamente que esta proposta educacional venha ser amadurecida em nosso país. Em tempos como os nossos, onde a decadência moral e política tem afetado nosso dia a dia. A educação acaba sofrendo as consequências e as nossas crianças são as principais vítimas deste colapso em que Brasil está inserido. Nossa oração é para que Deus em Sua Providência, conduza os governantes desta nação, para que em breve a "Homeschooling" seja vista com bons olhos.
Abraços.
Em Cristo,
Thiago Sanches.
E quanto na perspectiva cristã? Tenho visto alguns pastores incentivarem e até praticarem o homeschooling. Ainda não tenho uma opinião formada sobre os aspectos educacionais e suas consequências, mesmo lendo alguns artigos. No entanto, minha dúvida é: se os cristãos tirarem seus filhos da escola, como as crianças poderão influenciar outros colegas? Como poderão ser sal e luz, se a escola é onde as crianças e adolescentes têm maior acesso a não-cristãos? O ensinamento bíblico dos pais tem falhado a ponto de os filhos não serem identificados como cristãos? Vendo a tendência da educação pública no Brasil e ainda não tendo filhos, fico receosa em questionar, mas tenho uma preocupação quanto a isso. Grata.
ResponderA título de contribuição, informo também que há o tema número 822 do Supremo Tribunal Federal, com repercussão geral reconhecida, em que se discute a constitucionalidade desta forma de ensino, cujo link é o seguinte: http://stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4774632&numeroProcesso=888815&classeProcesso=RE&numeroTema=822
ResponderParticularmente, sou favorável a este método de ensino, entretanto, o que fazer em relação àquelas famílias que não alcançarem os resultados desejados?
Excelente artigo, equilibrado, provocativo e inteligente!
ResponderSolano, grato pelo texto sobre homeschooling. Senti falta de uma menção ao Rev. Rinaldo Belisário, que foi entrevistado numa longa reportagem sobre homeschooling na revista Veja em 2001. Embora eu já defendesse o homeschooling oficialmente no início da década de 1990 e meu livro O Movimento Homossexual (publicado pela Editora Betânia em 1998) também elogie bastante o homeschooling, eu era solteiro. Aliás, o primeiro e mais completo livro sobre homeschooling em português foi traduzido por mim: “De Volta Ao Lar,” da presbiteriana Mary Pride. Desde 1993 eu vinha lutando para publicá-lo no Brasil, mas só consegui em 2007. Quem praticou muito o homeschooling durante anos e tem experiência mais antiga do que a minha foi o Pr. Rinaldo, cujos quatro filhos, hoje já adultos e fora de casa, foram todos educados em casa. O caso da família Bueno e do Nunes, que ajudei a divulgar internacionalmente mediante LifeSiteNews, são mais recentes do que o do Pr. Rinaldo. Próximo março haverá um congresso internacional de homeschooling no Brasil, no Rio. O principal responsável internacional é o Michael Farris, que é evangélico. O responsável no Brasil, por ter fortes ligações com Olavo de Carvalho, colocou como maioria dos palestrantes brasileiros do evento católicos ligados ao Olavo, de modo que muitos evangélicos com longo histórico de homeschooling no Brasil foram deixados de fora. Além disso, a maioria desses palestrantes do Brasil, inclusive o organizador brasileiro, simpatizam publicamente com a defesa da Inquisição que Olavo faz, algo que está em contraposição ao Michael Farris, que fundou a maior organização de homeschooling do mundo — a HSLDA — e é autor do excelente livro “The History of Religious Liberty,” que ataca a Inquisição. Publiquei trechos de Inquisição desse livro aqui: http://bit.ly/1Rw3hnq
ResponderSevero: Registro feito e omissão histórica corrigida.
ResponderO homeschooling é fato no Brasil, agora cabe a evangélicos e católicos trabalhar em conjunto para encaminhar uma solução jurídica junto ao Estado Brasileiro.
ResponderTenho convivido, como católico, com muitos evangélicos das mais diversas denominações até pessoas sem uma crença religiosa definida, para buscar compor um encaminhamento para a educação domiciliar.
O trabalho pela educação domiciliar tem sido feito com força e serenidade, a conferencia global de educação domiciliar que ocorrerá dos dias 09 a 12 de março no RJ (www.ghec2016.org/pt-br) é mais um exemplo desta frutífera composição.
Caro Solano, grande artigo. É um auxílio para a causa da educação domiciliar. Forte abraço, Gustavo.
Acho que a criação de escolas cristãs seria um melhor caminho. A socialização proporcionada pela escola é algo maravilhoso e não gostaria de tirar isso de meus filhos.
ResponderSou membro da IPB e estou preparando soldados.
ResponderJamais tiraria meus filhos da escola. Há quem pense que o objetivo da escola é apenas dar/vender conhecimento. A socialização da criança é primordial.
Não podemos fazer como os essênios.
O homeschooling não quer prender as pessoas em casa para sempre, sem a interação social. A socialização não ocorre apenas na escola.
ResponderTenho lido muito sobre o assunto é percebido que o HS é mais que educação em casa, é um estilo de vida e não tem objetivo de prender as crianças em casa como falado anteriormente. Quem disse que ficar preso durante 4 horas numa sala e aula com 30 crianças da mesma idade é a única forma de socialização?Gostaria de poder iniciar a educação domiciliar com meus filhos e gostaria de saber se há experiência em Goiânia!
ResponderOi Érika.
ResponderAté Jesus começou seu Ministério na idade adulta.
Creio que crianças pequenas terão maior poder de influência a partir da juventude quando bem direcionadas pelos pais na infância. E a escola tira delas tempo precioso. Nesse tempo elas tem contato (e são influenciadas!) por pessoas e ideologias das mais diversas possíveis e muitas vezes contrárias ao que a família acredita.