Mais 500 anos de Calvino - Salmos, volume 4
Peças de teatro tendo Calvino como foco estão em cartaz e uma exposição temporária no Musée international de la Réforme (Museu Internacional da Reforma) mostra "Um dia na vida de Calvino", tentanto trazer para perto do público o que teria sido um dia de atividades na vida do reformador. Muito interessante a mostra, feita em blocos de cenas com textos, orações e possíveis diálogos do reformador, começando com suas orações matinais (4:00h), aula, refeição, sua participação no julgamento de Miguel Serveto até a hora de deitar-se (21:00h). Não trata-se de 'louvação', mas de um retrato da 'vida diária' que traz bastante luz sobre a piedade, firmeza, controvérsia e relações de Calvino com seus amigos e a cidade de Genebra.
Tudo isto escrevo a título de introdução do real ponto desta postagem, que
é a publicação do quarto volume do Comentário de Salmos, o qual tive o privilégio de prefaciar. Os comentários de Calvino permanecem como uma rica fonte para a interpretação bíblica até os dias de hoje e creio que a publicação dos mesmos na língua portuguesa enriquece profundamente as nossas condições de aprender sobre a exegese bíblica e o método de interpretação desenvolvido pelo reformador. Abaixo, deixo o prefácio falar...
Ainda muitos livros serão escritos procurando entender todas as dimensões sobre as quais a Reforma Protestante deixou o seu legado e as mudanças que causou para a história da humanidade. Para que esta reforma acontecesse, vários pequenos e grandes movimentos foram postos em curso pelo Senhor da história. Um destes movimentos deu-se na área da interpretação das Escrituras, que foi libertada da interpretação alegórica e da força da tradição da igreja da Idade Média. Grandes intérpretes foram levantados por Deus e capacitados com várias sortes de dons e talentos para que um grande salto pudesse ser dado na história da interpretação. Neste contexto é que aparecem os comentários de João Calvino, um grande teólogo, pastor, lingüista, intérprete e comentarista do seu tempo.
Uma das fortes características do movimento reformado foi a busca do sentido literal, gramático e histórico do texto da Bíblia, e, neste sentido, João Calvino foi reconhecido como o “Rei dos Comentaristas”.[1] Há muitos aspectos introduzidos nos comentários de Calvino que são praticamente desconhecidos para a sua época. Isto não significa, é claro, que Calvino interpretou de forma absolutamente independente. Como acadêmico, ele buscou as fontes disponíveis em seu tempo e trabalhou seus comentários de forma contextualizada, comparando sua interpretação com os escritos dos rabinos, os Pais da Igreja e comentários de seus contemporâneos. É bem verdade que o período da Reforma foi um de florescimento do interesse sobre as línguas originais e o texto da Escritura, o que gerou uma grande quantidade de comentários. Calvino tirou toda a vantagem deste ambiente para desenvolver o conhecimento do grego e do hebraico e aplicá-los na interpretação. Com estas ferramentas Calvino destaca-se no século XVI por sua originalidade, profundidade e valor permanente dos seus escritos. Não são muitos os textos e comentários que sobrevivem ao tempo de seu autor e aqui estamos nós, quatro séculos e meio depois, dispensando grande energia e recursos, para que esta obra se faça disponível para os leitores de língua portuguesa.
A obra magna de Calvino, As Institutas da Religião Cristã, já demonstrou ao longo dos séculos a sua importância e relevância como teólogo. Aos poucos, os comentários de Calvino publicados nesta série vão descortinando o pastor e intérprete. Cabe dar conhecimento ao leitor sobre a forma como nasceram estes comentários. Tendo sido pastor durante duas décadas e meia em Genebra, Calvino adotou como forma de pregação o método de exposição consecutiva das Escrituras. Ele começava suas séries de pregação no primeiro verso do primeiro capítulo de um livro e caminhava até o último verso do último capítulo. Normalmente, quando terminava um livro, começava o próximo. Tendo feito a devida preparação em oração, subia ao púlpito portando apenas o texto hebraico ou grego e pregava extemporaneamente. Assim, produziu milhares de sermões, dos quais cerca de pouco mais de 2000 foram preservados e muitos ainda carecem de publicação. Estes foram compilados ipsissima verba, durante 11 anos, por um homem chamado Denis Raguenier, pago para tal pelo serviço de diaconia da igreja de Genebra.[2] Os comentários, escritos posteriormente, eram baseados em suas exposições para a congregação, fossem sermões, aulas ou palestras. Logo, a pregação e o ensino de Calvino à congregação serviam como o elemento fomentador de seus comentários, onde sua alma de pastor transparece com grande clareza. Não é incomum encontrar as belas orações de Calvino ao fim de algumas de suas exposições, deixando a todos face a face com Deus.[3] Na verdade, um motivador específico para a publicação dos comentários de Calvino era o seu temor de que suas pregações e palestras viessem a ser publicadas contra a sua vontade. Para que não viesse a acontecer, debruçou-se para completar os comentários que viriam a ser publicados conforme a sua vontade (vol 1, p.32).
Os comentários de Calvino cobrem pelo menos setenta e cinco por cento dos livros do Antigo Testamento e sabe-se que alguns deles foram escritos concomitantemente à pregação, entre eles o comentário em Salmos. Já na dedicatória, “Aos leitores piedosos e sinceros”, Calvino afirma que sua decisão final de escrever este comentário específico se deu em função dos “apelos dos meus irmãos”, o que até então ele julgava desnecessário em função do comentário de Salmos de seu contemporâneo, Martin Bucer.
Ao contrário da imagem rígida transmitida pelas gravuras que retratam a face de Calvino, somada à densidade das Institutas e as asseverações contundentes contra as heresias de todas as espécies e, especialmente o Catolicismo Romano[4], encontramos no comentário de Salmos de Calvino a face e voz de um homem que compreende profundamente os sentimentos da alma. Ele mesmo afirma na introdução aos Salmos que denomina este livro de “Uma anatomia de todas as partes da alma”, e, por certo, ele escrutina a sua própria alma em seus comentários. Aliás, é na dedicatória ao comentário dos Salmos que encontramos alguns raros e preciosos dados autobiográficos de Calvino. O tom de denúncia contra o erro nunca e esvaziado, mas a voz do pastor é presente.
Outra área que distingue Calvino em seus comentários é como hebraísta. É óbvio que não se pode esperar que usasse, anacronicamente, os conhecimentos e recursos que são posteriores à sua época. Mas, com certeza, não se pode deixar de observar que ele avança significativamente na aplicação do conhecimento da língua hebraica na interpretação. Uma de suas claras convicções é de que o conhecimento da língua original é fundamental para a compreensão do texto e para a boa exegese. Justamente no quesito exegese é que a habilidade de Calvino supera o que foi produzido em seu tempo. Ele mantinha a convicção de que compreensão gramatical precede a compreensão teológica. No comentário dos Salmos o uso do hebraico transita entre o trabalho lexical e a gramática. Comparando as traduções bíblicas e outros comentários, incluindo comentários rabínicos, faz acertadas propostas de tradução para o texto, discutindo com grande habilidade a relevância, por exemplo, a questão da tradução dos verbos, o significado específico de determinadas partículas e seu uso. Num tempo em que o estudo gramatical tendia pesadamente para o prescritivo, Calvino discute o uso contextual de palavras e expressões.
Como filho de seu tempo, lutando contra séculos de interpretação alegórica e tendenciosa, Calvino deu passos visíveis em direção contrária. Ele afirma que “O verdadeiro significado das Escrituras é aquele que é natural e óbvio”.[5] A habilidade em ir “da mera letra, além” e observar a intenção das palavras e seu autor é fundamental para qualquer intérprete e, principalmente, para aqueles que vão interpretar as Escrituras. Calvino, mais uma vez, destaca-se! Neste sentido, a leitura dos comentários de Calvino torna-se uma ferramenta importantíssima para aqueles que desejam compreender o texto com profundidade e desenvolver habilidade semelhante como intérpretes.
Deixo um alerta ao leitor que primeiramente aproxima-se dos comentários de Calvino: espere certos ‘saltos’ interpretativos, o que alguns podem considerar como interpretação alegórica. O fato é que Calvino, ao ler o Antigo Testamento com uma visão cristocêntrica, muitas vezes chega diretamente a aplicações neo-testamentárias no texto. Veja-se, por exemplo, a leitura de Calvino nos Salmos. Ele parte sempre do pressuposto cristão de que Israel corresponde à Igreja, o que, na teologia reformada, é perfeitamente aceitável e desejável. Entretanto, é importante notar a necessidade de uma leitura escalonada, na qual, primeiramente, deve-se ver o sentido pretendido pelo autor humano do texto e aplicado ao seu próprio tempo. Em vários de seus comentários, Calvino simplesmente segue para o próximo passo. Um exemplo claro encontra-se no Salmo 133, onde Israel é apontado como a Igreja e a unção com o óleo sobre a cabeça de Arão, que desce sobre a barba e gola da vestes do sacerdote, como Cristo, o cabeça, e a sua Igreja: “assim somos levados a entender que a paz que emana de Cristo como a cabeça é difusa por toda a extensão e amplitude da Igreja” (comentário no Salmo 133). Ainda que esta seja a conclusão final esperada, trata-se mais diretamente de uma aplicação do texto, o que, entendemos, é desejável em um sermão, mas, deve ser mais minuciosamente explicado em um comentário. Mas esperar que estes comentários se adaptem ao nosso formato contemporâneo de comentário, novamente, seria um desejo anacrônico. Por outro lado, observa-se em seus comentários uma percepção aguçada entre os aspectos de continuidade e descontinuidade entre o Antigo e Novo Testamentos, dando a base sobre a qual a teologia calvinista viria a desenvolver-se.
Estes comentários devem fazer parte da biblioteca daqueles que desejam desenvolver uma compreensão profunda e coerente do livro dos Salmos, tanto pela sua perspectiva histórica quanto pela capacidade que Calvino demonstra em tocar a alma dos “leitores piedosos e sinceros” na exposição da Palavra de Deus.[1] Schaff, Phillip. “Calvin as a Commentator” em The Presbyterian and Reformed Review (3:11, 1892), p. 462: “Se Lutero foi o rei dos tradutores, Calvino foi o rei do comentaristas”
[2] Olson, Jeannine. Calvin and Social Welfare: Deacons and the bourse française. Selinsgrove, PA, EUA: Susquehanna University Press, 1989, p. 47.
[3] Além das orações mantidas em seus sermões, como parte da própria exposição, muitas orações estão também em seus comentários.
[4] Em Salmos, vol. 1, p. 39, Calvino revela a sua motivação em publicar as Institutas da Religião Cristã: “Meu objetivo era, antes de tudo, provar que tais notícias eram falsas e caluniosas, e assim defender meus irmãos, cuja morte era preciosa aos olhos do Senhor; e meu próximo objetivo visava a que, como as mesmas crueldades poderiam muito em breve ser praticadas contra muitas pessoas infelizes e indefesas, as nações estrangeiras fossem sensibilizadas, pelo menos, com um mínimo de compaixão e solicitude para com elas.”
[5] Citado em Lawson, Steven. A arte expositiva de João Calvino. S. J. Campos: Editora Fiel, 2008, p. 72. Do Comentário aos Gálatas, capítulo 4, verso 22.