Existe em todo mundo um movimento entre católicos e protestantes que
visa resgatar a mística medieval, especialmente as práticas e as
disciplinas espirituais dos cristãos da Idade Média como modelo para uma
nova espiritualidade hoje, em reação à frieza, carnalidade e mundanismo
da cristandade moderna. Esse movimento é geralmente conhecido como
“espiritualidade” e tem atraído não poucos líderes católicos e
protestantes. Apesar do nome, é bom lembrar que existem importantes
diferenças entre esse movimento e a busca tradicional de uma vida
espiritual mais profunda por parte do Cristianismo histórico.
Que
esse movimento tenha adeptos entre os católicos, não é de admirar, pois
é entre eles que está a sua origem e se encontram seus ícones. O que
espanta é sua presença entre os protestantes, e mesmo aqueles de
convicções mais conservadoras.
Eu até entendo o motivo
pelo qual o movimento de espiritualidade tem conseguido atrair pastores e
líderes das igrejas históricas e conservadoras em nosso país. Primeiro,
porque existe uma decepção justificada da parte desses líderes diante
da falta das práticas devocionais em boa parte dos que são
teologicamente mais conservadores. Infelizmente, os quartéis
conservadores abrigam pastores assim, que não oram, não jejuam, não
gastam tempo lendo a Palavra e meditando nela, buscando uma comunhão
mais profunda com Deus e a plenitude do seu Espírito Santo.
Ainda
hoje estava falando com outro colega pastor que se queixava de colegas
de ministério que ficam na cama até perto do meio dia, que gastam a
maior parte do tempo na internet, que não trabalham, não evangelizam,
não gastam tempo com Deus e com o rebanho, e que vão levando o
ministério nessa farsa. Não é de espantar que suas igrejas sejam
minúsculas, problemáticas e que eles não se demorem muito tempo em um
mesmo local. E que, quando saem, deixam atrás de si um rastro de
destruição, confusão, insatisfação e problemas não resolvidos. É lógico
que esses não representam a totalidade dos pastores conservadores, e
muito menos a teologia reformada, que tradicionalmente sempre valorizou a
vida de piedade ao lado do cultivo intelectual da mente. Todavia, o
fato de que permanecem anos a fio em seus presbitérios e convenções,
enterrando igrejas, criando problemas, sem que sejam questionados ou
confrontados, dá aos demais conservadores ares de cumplicidade e abre
portas para que movimentos como esse da espiritualidade encontre mentes e
corações ávidos, cansados da frieza, carnalidade e politicagem que
encontram entre os conservadores.
Segundo, existe no
próprio meio conservador um desencanto com a piedade pentecostal que já
teve melhores dias entre nós. Muitos pastores conservadores que um dia
se sentiram atraídos pelas ofertas do pentecostalismo, de batismo com o
Espírito Santo, falar em línguas, sonhos e visões, profecias, sinais e
prodígios, têm recuado diante da aparente superficialidade e da ênfase
desmedida nas experiências, que são características desse movimento.
Eles querem uma piedade mais solidamente enraizada nas Escrituras e que
ofereça alguma salvaguarda para os exageros, falsificações e eventuais
interferências humanas nas experiências. É quando surge o movimento de
espiritualidade, que se distancia do pentecostalismo em vários aspectos e
promete aquilo que todos desejam, uma proximidade com Deus nunca dantes
experimentada mediante as práticas devocionais, sem os abusos da
experiência pentecostal.
Outro atrativo no movimento é
que ele se reveste de um misticismo que apela profundamente às almas que
por natureza são mais piedosas e religiosas, as quais também se
encontram dentro dos limites da tradição mais conservadora. Para tais
pessoas, a idéia de se gastar tempo em silêncio contemplando o divino,
ouvindo a voz de Deus, penetrando os tabernáculos celestes, tocando nas
vestes de Cristo, mortificando a carne e suas paixões mediante o jejum e
abstinência de alguns confortos terrenos e físicos, é um atrativo
poderoso, como sempre foi através da história da Igreja.
Eu
confesso, todavia, que nunca me senti realmente atraído por esse tipo
de espiritualidade. Não gostaria de pensar que isso é porque eu sou um
daqueles pastores frios e sem o Espírito Santo que mencionei em algum
parágrafo acima. Há quem concorda totalmente com essa avaliação a meu
respeito. Mas, deixarei nas mãos de Deus o veredicto sobre isso.
Conscientemente, não me sinto interessado nessa espiritualidade, acima
de tudo, pelo fato de que ela é defendido por padres e leigos católicos e
que, entre os protestantes, ganhou muitos adeptos e defensores da parte
dos liberais. Desconfio de tudo que os liberais apóiam e defendem.
Não
estou dizendo que todos os protestantes que adotaram ou aderiram ao
movimento de espiritualidade são liberais. Conheço uma meia dúzia que
não é. Deve haver muitos outros. O que estou dizendo é que, para mim, é
no mínimo intrigante que os liberais, que sempre se disseram
progressistas e amantes do novo, defendam com tanto interesse um modelo
de espiritualidade que tem como ícones monges e freiras católicos da
Idade Média e o tipo de práticas espirituais deles.
Não
discordo de tudo que os defensores da espiritualidade pregam.
Quebrantamento, despojamento, mortificação, humildade, amor ao próximo
são conceitos bíblicos. E encontramos vários desses conceitos defendidos
pelos seguidores da espiritualidade. Meu problema não é tanto o que
eles dizem – embora eu pudesse apontar um ou outro ponto de discordância
conceitual, mas o que eles não dizem ou dizem muito baixinho, a ponto
de se perder no cipoal de outros conceitos.
Sinto
falta, por exemplo, de uma ênfase na justificação pela fé em Cristo,
pela graça, sem as obras ou méritos humanos, como raiz da
espiritualidade. Uma espiritualidade que não se baseia na justificação
pela fé e que nasce dela está fadada a virar, em algum momento, uma
tentativa de justificação pela espiritualidade ou piedade pessoal. Não
estou dizendo que os defensores da espiritualidade negam a justificação
pela fé somente – talvez os defensores católicos o façam, pois a
doutrina católica de fato anatematiza quem defende a salvação pela fé
somente. O que estou dizendo é que não encontro essa ênfase à
justificação pela fé em Cristo nos escritos que defendem a
espiritualidade.
Sinto falta, igualmente, de uma
declaração mais aberta e explícita que a espiritualidade começa com a
regeneração, o novo nascimento, e que somente pessoas que nasceram de
novo e foram regeneradas pelo Espírito Santo de Deus, que são uma nova
criatura, um novo homem, é que podem realmente se santificar, crescer
espiritualmente e ter comunhão íntima com Deus. A ausência da doutrina
da regeneração no movimento pode dar a impressão de que por detrás de
tudo está a idéia de que a religiosa natural, inata, do ser humano, por
causa da imago dei, é suficiente para uma aproximação espiritual em
relação a Deus mediante o emprego das práticas devocionais.
O
caráter progressivo na santificação também está faltando na pregação do
movimento. Quando não mantemos em mente o fato de que a santificação é
imperfeita nesse mundo, que nunca ficaremos aqui totalmente livres da
nossa natureza pecaminosa e de seus efeitos, facilmente podemos nos
inclinar para o perfeccionismo, que ao fim traz arrogância ou
frustração.
Também gostaria de ver mais claramente explicado o que
significa imitar a Jesus como uma das características da vida cristã.
Pois, até onde sei, Jesus não era cristão. A religião dele era
totalmente diferente da nossa. Nós somos pecadores. Jesus não era. Logo,
ele não se arrependia, não pedia perdão, não mortificava uma natureza
pecaminosa, não lamentava e chorava por seus pecados. Ele não orava em
nome de alguém e nem precisava de um mediador entre ele e Deus. Ele não
tinha consciência de pecado e nem sentia culpa – a não ser quando levou
sobre si nossos pecados na cruz. Ele não precisava ser justificado de
seus pecados e nem experimentava o processo crescente e contínuo de
santificação. A religião de Jesus era a religião do Éden, a religião de
Adão e Eva antes de pecarem. Somente eles viveram essa religião. Nós
somos cristãos. Eles nunca foram. Jesus nunca foi. Como, portanto, vou
imitá-lo nesse sentido?
É esse tipo de definição e
esclarecimento que sinto falta na literatura da espiritualidade, que
constantemente se refere à imitação de Cristo sem maiores qualificações.
Quando vemos Jesus somente como exemplo a ser seguido, podemos perdê-lo
de vista como nosso Senhor e Salvador. Quando o Novo Testamento fala em
imitarmos a Cristo, é sempre em sua disposição de renunciar a si mesmo
para fazer a vontade de Deus, sofrendo mansamente as contradições
(Filipenses 2:5; 1Pedro 2:21). Mas nunca em imitarmos a Jesus como
cristão, em suas práticas devocionais e na sua espiritualidade.
Faltam
ainda outras definições em pontos cruciais. Por exemplo, o que
realmente significa “ouvir a voz de Deus”, algo que aparece
constantemente no discurso dos defensores da espiritualidade? Quando
fico em silêncio, meditando nas Escrituras, aberto para Deus, o que de
fato estou esperando? Ouvir a voz de Deus com esses ouvidos que um dia a
terra há de comer? Ouvir uma voz interior, como os Quackers? Sentir uma
presença espiritual poderosa, definida, que afeta inclusive meu corpo,
com tremores, arrepios? Ver uma luz interior, ou até mesmo ter uma visão
do Cristo glorificado e manter diálogos com ele, como Teresa D’Ávila,
Inácio de Loyola, a freira Hildegard e mais recentemente Benny Hinn? Ou
talvez essa indefinição do que seja “ouvir a voz de Deus” seja
intencional, visto que a indefinição abriga todas as coisas mencionadas
acima e outras mais, unindo por essas experiências vagas pessoas das
mais diferentes persuasões doutrinárias e teológicas, como católicos e
evangélicos, conservadores e liberais?
Por fim, entendo
que biblicamente os meios exteriores e ordinários pelos quais Cristo
comunica à sua Igreja os benefícios de sua mediação, de seu sacrifício e
de sua ressurreição, são a Palavra, os sacramentos e a oração. Outros
meios, como, silêncio, meditação, contemplação, isolamento, mortificação
asceta do corpo, não são reconhecidos como meios de graça, embora
possam ter algum valor temporal acessório às ordenanças de Cristo. Como
ensinou Paulo, seguir uma lista daquilo que podemos ou não podemos
manusear, tocar e provar tem “aparência de sabedoria, como culto de si
mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético; todavia, não tem valor
algum contra a sensualidade” (Col 2:20-23).
Por todos
esses motivos acima, nunca realmente me senti interessado na
espiritualidade proposta por esse movimento. Parece-me uma tentativa de
elevação espiritual sem a teologia bíblica, uma tentativa de buscar a
Deus por parte de quem já desistiu da doutrina cristã, das verdades
formuladas nas Escrituras de maneira proposicional. Prefiro a
espiritualidade evangélica tradicional, centrada na justificação pela
fé, que enfatiza a graça de Deus recebida mediante a Palavra, os
sacramentos e a oração e que vê a santidade como um processo inacabado
nesse mundo, embora tendo como alvo a perfeição final.
Franklin
Ferreira, conversando comigo sobre esse assunto, escreveu o que se
segue, que reproduzo literalmente por retratar de forma sintética e
profunda o que considero o principal problema com a espiritualidade
defendida pelo movimento que leva esse nome:
Acho
que você conhece a distinção que Lutero fez entre a "teologia da
glória" e a teologia da cruz". Muito do movimento de espiritualidade
moderno cai, justamente, no que Lutero chamou de "teologia da glória", a
tentativa de chegar a Deus de forma imediata, ou por meio de legalismo
(mortificação, flagelação da carne, etc.), especulação teológica (como
no liberalismo de Tillich ou no misticismo (as escadas da ascensão da
alma para o céu, com a necessária purgação, mortificação e iluminação).
Note que nessas três escadas, o que se fala é da união da alma de forma
imediata com Deus, sem a mediação de Cristo crucificado. Para Lutero, o
fiel só encontra Deus não nas manifestações de poder que supostamente
cercam as três escadas, mas em fraqueza, na cruz, pois por meio dela
somos justificados.
Enfim. Deus
me guarde de ir contra a busca de uma vida cristã superior, de
desenvolver a vida interior. Que Ele igualmente me guarde de qualquer
tentativa de alcançar isso que não esteja solidamente embasada em Sua
Palavra.